Tribunais continuam a recrutar profissionais e amadores sem transparência nem regras, para traduzir português em processos. Em 2017, foram anunciadas mudanças.
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Procedimentos que mudam consoante a comarca ou o tribunal, intérpretes nomeados apenas por serem conhecidos de magistrados e oficiais de justiça, ou diligências que são realizadas numa "língua terceira" por faltarem profissionais especializados em idiomas considerados "difíceis". Mais de três anos depois de o Ministério de Justiça (MJ) ter anunciado a criação de "uma lista oficial de tradutores e intérpretes nos processos judiciais", continua a não existir critérios objetivos que permitam assegurar a qualidade do serviço prestado e transparência na nomeação dos profissionais.
Contactada pelo JN, a tutela não esclareceu em que ponto se encontra o Regime Jurídico do Tradutor e Intérprete, anunciado no verão de 2017. Mas, neste ano de 2020, houve, pelo menos, 12 012 processos em que foi solicitada interpretação para português nos respetivos julgamentos. Menos 6901 do quem em 2019.
"Não existe em Portugal nenhum "banco" ou lista de intérpretes devidamente credenciados pelo Ministério de Justiça nem intérpretes de quem, por isso, se possa afirmar, de forma consistente, que são intérpretes idóneos", lamenta, em nome da Ordem dos Advogados, Rui Silva Leal. Segundo este, são os tribunais que elaboram uma lista própria, "com os nomes de quem se vai disponibilizando para o efeito e cuja seleção é, assim, pura e simplesmente aleatória".
Recrutada em loja chinesa
O presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais (SFJ), António Marçal, reconhece que as condições "não são as ideais". E diz que, quando é difícil encontrar intérpretes, os oficiais de justiça recorrem a embaixadas, escolas, a pesquisas na Internet e a empresas que cobram pelos serviços.
"Nos juízos periféricos, com pouca densidade populacional, continuam a existir muitas dificuldades, privilegiando-se as "nomeações ocasionais", por conhecimento dos próprios oficiais de justiça, juízes e procuradores", precisa Marçal ao JN. E exemplifica com um episódio, no Algarve, "em que foi a própria juiz a ir a uma loja buscar uma rapariga chinesa para fazer de intérprete".
Já no caso dos primeiros interrogatórios judiciais, que têm de se realizar 48 horas após a detenção, chega a recorrer-se, quando o prazo se está a esgotar, de "forma muito "oficiosa"", a uma "terceira língua".
Formação específica
"É imperioso criar-se um "banco" de intérpretes devidamente credenciados, nas diversas línguas "fáceis" ou "difíceis", elaborado de acordo com critérios muito rigorosos", sob dependência do MJ, propõe Silva Leal. O dirigente do SFJ acrescenta que a lista poderia ser "articulada com as embaixadas, escolas de língua e tradução", "partilhada com as polícias e a Segurança Social" e "agregada por cada comarca/região".
Além disso, Marçal reclama formação específica. Como salienta ao JN a presidente da Associação de Profissionais de Tradução e de Interpretação, Paula Ribeiro, ser intérprete em tribunal "vai muito além de saber ler ou falar uma língua estrangeira". Silva Leal recorda um julgamento em que teve de avisar que a interpretação, de português para castelhano, "estava a ocorrer de forma muito deficiente e até errada". E Paula Ribeiro questiona mesmo: "Quantos culpados saíram em liberdade e quantos inocentes foram ou estão presos devido a um mau trabalho de interpretação?".
Mais idiomas "difíceis" do que "fáceis"
Mandarim, russo, coreano, árabe, tailandês, hindi, holandês, alguns dialetos africanos e, até, castelhano. A lista de idiomas em que é difícil encontrar intérpretes para português é bastante mais longa do que aquelas em que, segundo as fontes ouvidas pelo JN, é fácil: inglês, francês e alemão. Já a nível regional, o problema nota-se sobretudo no Algarve e no Alentejo Litoral. Nesta última região, onde existe "uma grande comunidade de indianos, nepaleses, paquistaneses e até tailandeses", não há, segundo António Marçal, do Sindicato dos Funcionários Judiciais, intérpretes, sendo as próprias pessoas dessas comunidades que desempenham tal papel, sem que seja possível aferir a qualidade do seu trabalho.
2587 euros foram pagos a intérpretes e tradutores este ano, segundo o MJ. Em 2019, o montante foi de quase três milhões. A quantia poderá não contemplar todas as despesas com estes serviços.
12 012 processos tiveram necessidade, este ano, da intervenção de intérpretes (em julgamentos ou outras diligências orais), segundo regista a tutela. Em 2019, tinham sido 18 913 e, no ano anterior, 18 724.
Prestam compromisso
Os intérpretes estão obrigados, em julgamento como nas outras fases do processo, a comprometer-se, pela sua "honra", a "desempenhar fielmente as funções" que lhes são confiadas. Se não o fizerem, não podem exercer.
Sujeitos a segredo
Tal como os restantes sujeitos processuais, os intérpretes podem ser chamados a diligências da fase de inquérito e estão obrigados a respeitar o segredo de justiça. Não podem ainda divulgar as conversas entre arguidos e advogados que traduzem.
Em simultâneo
Por norma, num julgamento, os intérpretes ouvem as questões dos magistrados e advogados em português, traduzem-na para o idioma do arguido ou testemunha, e, depois, transmitem, na língua de Camões, a sua resposta.