Ministério Público conclui que magistrado de Tribunal do Porto acumulou funções de consultor jurídico e de "toupeira" no sistema judicial, para beneficiar grupo empresarial e um presidente de câmara.
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João Evangelista, juiz de direito que está colocado no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto, é acusado de ter recebido mais de 168 mil euros do empresário hoteleiro Gumercindo Lourenço, na prática de crimes de corrupção passiva, procuradoria ilícita e abuso de poder. A acusação foi deduzida há pouco mais de um mês, pelo Ministério Público (MP), e também visa Gumercindo Lourenço, oito das suas empresas e, ainda, o ex-presidente da Câmara de Oliveira de Frades Luís Vasconcelos.
Evangelista, que tem 55 anos e é juiz desde 2012, terá beneficiado Gumercindo Lourenço, mas não por intervenção direta nos processos que este e as suas empresas tinham pendentes nos tribunais. Segundo a Procuradoria-Geral Regional de Coimbra, que dirigiu a investigação da Polícia Judiciária de Aveiro, o juiz beneficiou aqueles arguidos porque lhes forneceu informações de processos afetos a outros magistrados, praticou atos próprios de advogado e elaborou-lhes pareceres, participações, requerimentos, contestações e recursos, entre outros documentos.
A colaboração com Gumercindo, dono do Grupo de Desenvolvimento das Termas de Portugal, já viria do tempo em que Evangelista era técnico superior da Câmara de São Pedro do Sul (de onde é natural) e presidente da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Lafões, mas intensificou-se quando este chegou a juiz. "Gumercindo viu na condição de juiz de direito do arguido Evangelista uma mais-valia para os seus interesses pessoais e empresariais e (...) gizou um plano visando incrementar os termos da colaboração daquele para consigo e com as empresas que liderava e geria", lê-se na acusação.
A influência ganha por Evangelista foi tal, que lhe cabia indicar os advogados a contratar para representar, em tribunal, o universo empresarial de Gumercindo. Estes advogados, diz o MP, assumiam como suas peças elaboradas de acordo com as instruções do juiz.
Avença de 800 euros por mês
As contrapartidas de Evangelista terão sido um total de 96 mil euros resultante de uma "avença" mensal de 800 euros; 47 mil pela elaboração de uma peça para um processo fiscal que poupou quase dois milhões de euros à construtora Montalvia, de Gumercindo; estadias gratuitas ou com desconto em hotéis, numa vantagem de 7544 euros; e o pagamento de móveis no montante de 17 548 euros para uma casa do juiz na Maia. De fora destas contas ficou um Mercedes cuja cedência ao juiz foi investigada (como noticiou o JN em 2019 e ontem em edição online), mas não confirmada pela investigação.
O MP acusou Gurmecindo e as suas oito empresas de corrupção ativa para ato ilícito e da coautoria de crimes de procuradoria ilícita e acesso ilegítimo. Este tipo de crime e o de abuso de poder foram imputados ainda ao arguido Luís Vasconcelos, que presidiu à Câmara de Oliveira de Frades. Esta era demandada num processo pendente no TAF de Viseu e o então autarca do PSD terá pedido a Evangelista para aceder ao processo e retirar as informações que julgasse relevantes. O juiz, colocado no tribunal, mas não titular do processo, acedeu a este, pelo menos, 183 vezes. O JN tentou, sem êxito, obter uma reação dos arguidos João Evangelista, Gumercindo Lourenço e Luís Vasconcelos.
Gumercindo Lourenço
O empresário que soma hotéis e processos
Gumercindo d"Oliveira Lourenço, natural de Mamouros, Castro Daire, e residente em Abraveses, Viseu, soma várias empresas imobiliárias e perto de uma dúzia de hotéis termais, no Centro e Norte do País, mas vem somando, também, problemas com a Justiça. Além do caso que envolve um juiz, o empresário, de 70 anos, foi acusado, há semanas, de corromper o ex-presidente da Câmara de Tabuaço, João Ribeiro. E, em 2018, até foi condenado a cinco anos de prisão efetiva, por fraude com subsídios. Um recurso suspendeu-lhe a pena.
Disciplina
Processo aberto
O Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais informou, na quinta-feira, que, a 4 de novembro, recebeu o despacho de acusação contra João Evangelista e, "de imediato", instaurou um processo disciplinar.
Suspenso de funções
A 8 de novembro, o Conselho Superior decidiu acolher a proposta do instrutor do processo disciplinar e decidiu "suspender preventivamente" de funções o juiz de direito João Evangelista.