Quando Vítor Valente, trabalhador do sexo em part-time há 17 anos, se desloca a casa de um cliente, costuma deixar com um colega ou amigo a identificação e a morada da pessoa com quem se vai encontrar. A partilha não é capricho nem denúncia.
Corpo do artigo
"É para não me encontrar numa situação inesperada, em que ninguém sabe onde estou nem com quem", explica, ao JN, o ativista do Movimento dos Trabalhadorxs do Sexo (MTS), que, embora nunca tenha passado por uma situação de violência, tem consciência de que corre esse risco. Até porque, acrescenta, há na legislação portuguesa uma "contradição absurda": "A prostituição e o restante trabalho sexual não são ilegais, mas depois todas as suas formas de o exercer em segurança, com transparência e sem ser num contexto de estigma ou marginalização, são criminalizadas". E, "por norma", quem sofre com a violência não apresenta queixa na Polícia, por "receio".
Ontem, foi o Dia Internacional contra a Violência sobre Trabalhadores do Sexo, um fenómeno cuja dimensão está longe de ser conhecida.
do insulto à violação
Alexandra Oliveira, professora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação do Porto, confirma que o fenómeno está "largamente demonstrado". "A maioria das pessoas que faz trabalho sexual é mulher cisgénero [que se identifica com o género de nascença], mas a violência não é exclusiva destas", refere, com as mulheres trans a serem "um dos grupos" que mais sofrem. Além de insultos e agressões físicas e sexuais, a especialista destaca ainda a "estigmatização" e a "violência institucional, exposta de forma evidente quando os direitos das prostitutas à maternidade é posto em causa, quando os trabalhadores do sexo são discriminados em instituições de saúde, quando a Polícia as persegue na rua ou quando não são reconhecidos como profissionais, sendo-lhes negados direitos laborais".
Entre quem se queixa ao MTS, o incidente mais comum são os roubos por parte de "clientes ou falsos clientes". Vítor Valente conhece ainda colegas homens que foram agredidos, alguns violados, e não denunciaram às autoridades. "Somos recriminalizados quando vamos à Polícia fazer queixa e portanto a maior parte não vai", frisa.
O ativista considera, aliás, um "desastre" que medidas tomadas pelos trabalhadores do sexo para sua proteção possam culminar em acusações de lenocínio simples, distinto do tráfico sexual. "Para trabalharmos juntos num apartamento, alguém tem de dar o nome para o alugarmos. Imagine que sou eu. Posso ser criminalizado como proxeneta e, contudo, estou só a dividir um espaço de trabalho com colegas, por uma questão de segurança", exemplifica.
Uma profissional de rua que dê boleia às colegas e receba o dinheiro da gasolina, uma pessoa que seja contratada para fazer a gestão de clientes e horários e o arrendatário de um espaço que não fica com qualquer percentagem do lucro do serviço sexual podem ser, garante, também criminalizados.
"alma fica à porta"
À associação "O Ninho", em Lisboa, chegam, há mais de cinco décadas, mulheres vítimas de prostituição. Atualmente, são acompanhadas mulheres dos 18 aos 70 anos. Entre estas, adianta a diretora técnica do espaço, Ana Mendes, há sobretudo cidadãs do Gana e da Nigéria, que "vinham para a Europa à procura de uma vida melhor e acabaram numa situação em que não tinham outra alternativa a não ser prostituir-se para pagar a dívida da viagem".
Muitas têm problemas de saúde mental, fruto desta atividade. "Temos aqui uma mulher que nos diz muitas vezes: "o meu corpo vai para o quarto, mas a minha alma fica à porta"", desabafa.
Perspetivas distintas
Enquanto para o MTS o trabalho sexual, que inclui a prostituição, é a maior parte das vezes voluntário e uma escolha "consciente e adulta", para "O Ninho" a prostituição é sempre um "atentado à dignidade humana".
Faltam estudos
A investigadora Alexandra Oliveira alerta que, embora existam estudos que mostram que a violência não é denunciada, não é possível generalizar os dados.
Mais risco na rua
O risco de violência é superior na rua, onde é sobretudo verbal e físico, do que em espaços interiores, onde é mais provável ser sexual.