Prova produzida poderia ser "contaminada", admitiu tribunal. Bastonário acusa primeiro-ministro de "ingerência".
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O Tribunal de Aveiro adiou, na terça-feira, a pedido dos advogados de defesa, o início do julgamento das agências funerárias acusadas de subornarem funcionários da morgue do hospital de Aveiro, por considerar que a prova produzida poderia ser "contaminada" face ao chumbo recente pelo Tribunal Constitucional da chamada lei dos metadados.
A decisão surgiu no mesmo dia em que o bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, criticou a interpretação feita pelo primeiro-ministro, António Costa, do acórdão do Tribunal Constitucional (TC) e apelou aos associados que "tomem em todos os processos as iniciativas consideradas necessárias à defesa dos seus constituintes, independentemente da forma como" estas "sejam vistas pelo poder político".
Costa sustentara na véspera, citando a Constituição, que a decisão do TC não afeta os casos julgados. Apesar disso, ressalvou, tal não impedirá os defensores dos arguidos de "cumprirem o seu papel no Estado de direito, defendendo os interesses dos seus clientes".
Ontem, Menezes Leitão ripostou que "o Governo não se pode ingerir na atividade dos tribunais, como inevitavelmente sucede se o primeiro-ministro intervém no espaço público a defender uma interpretação jurídica sobre as consequências de uma decisão judicial, desvalorizando" as iniciativas em sentido contrário intentadas pelos advogados.
"A Ordem dos Advogados acredita na independência dos tribunais portugueses e espera, por isso, que os mesmos decidam os processos apenas com base na Constituição e na lei, independentemente da posição pública já assumida pelo Governo", sublinhou o bastonário.
Mais incerto é o destino dos processos que estão atualmente em fase de inquérito, recurso ou, como no caso de Aveiro, com o julgamento prestes a começar.
não há risco de cair
No banco dos réus, sentam-se 20 arguidos, incluindo dois funcionários da morgue do hospital de Aveiro, suspeitos de, entre 2009 e 2015, terem aceitado "gratificações" e outras "vantagens" de agentes funerários do distrito como contrapartida de os favorecerem.
"Se se começasse este julgamento, de que constam muitas escutas, e os arguidos começassem a ser interrogados sobre as escutas e estas viessem a ser anuladas, estava a criar-se matéria para o julgamento ser completamente anulado, porque estava a produzir-se prova proibida", explicou o advogado de defesa Celso Cruzeiro, ressalvando que não há crimes em risco de cair mas apenas "factos que têm de ser suprimidos".
A defesa tem agora dez dias para concretizar os argumentos e as alegadas "anomalias" de que a acusação deverá ser "expurgada".
No acórdão, o TC não se pronunciou sobre escutas.
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Conteúdo protegido
Os metadados, até agora conservados pelas operadoras durante um ano, são as circunstâncias em que ocorre uma chamada ou um acesso à Net e não o seu conteúdo. Permitem saber onde alguém esteve, com quem fala e com que frequência.
População em geral
As operadoras armazenavam os dados de todos os seus clientes, independentemente de estes serem ou não suspeitos de um crime. Se o viessem a ser, um juiz podia então ordenar que fossem remetidos às autoridades.
Diferentes de escutas
As interceções telefónicas, também autorizadas por um juiz, permitem às autoridades, ao contrário dos metadados, escutar as conversas. Não são abrangidas pelo chumbo e podem continuar a ser usadas na investigação.
Vários argumentos
A possibilidade de os metadados serem conservados fora da União Europeia e a desproporcionalidade da restrição do direito à vida privada foram alguns dos argumentos invocados no acórdão.
Nova lei à vista
António Costa prometeu já para o início de junho o envio ao Parlamento de uma nova lei. A ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, preferiu dizer que o fará no "mais curto prazo possível".