Metadados: "Relatos de caos total nos tribunais parecem profundamente exagerados"
Ricardo Lafuente, dirigente da associação que desencadeou o processo sobre a inconstitucionalidade da lei dos metadados, ataca o "comentariado alarmista"
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A Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais dirigiu uma queixa à provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, que a levaria a suscitar a inconstitucionalidade da lei dos metadados. O Tribunal Constitucional proferiu um acórdão que, na prática, proíbe as operadoras de conservarem, por um ano, os metadados dos clientes, como números de telefone, hora, local e duração de chamadas, ou os IP de computadores. Relatos de diversos atores da justiça e da política têm atribuído ao acórdão efeitos catastróficos na justiça criminal que o vice-presidente da D3, Ricardo Lafuente, considera "profundamente exagerados". Em entrevista escrita ao JN, o dirigente da associação que se constituiu no Porto também avisa que a ideia de contornar o problema através de uma revisão da Constituição, como sugeriu o primeiro-ministro, António Costa, tornaria a nossa Lei Fundamental "incompatível" com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a que Portugal está vinculado.
Foi a partir de uma queixa da D3 à Provedora da Justiça que chegámos à decisão do Constitucional. O que vos moveu?
Contestávamos uma lei que consagrava as mesmas medidas que levaram à invalidação, no Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), da diretiva que deu origem a essa lei. Já sentíamos ser preocupante o excessivo alcance do armazenamento de dados pessoais sensíveis que esta lei estipulava. Assim, tratámos de chamar a atenção para a óbvia invalidade de uma lei que segue uma diretiva europeia invalidada pelo TJUE.
O TC deu-vos razão. Como se sentem agora?
É uma vitória, claro, mas o facto de uma lei inconstitucional ter vigorado durante 14 anos não nos deixa grande vontade para festejos.
Vários atores políticos, como o presidente da República e o primeiro-ministro, admitiram uma revisão constitucional. O que pensam desta intenção?
Esta decisão tem também por base várias decisões do TJUE no mesmo sentido, incluindo o acórdão Digital Rights Ireland, em 2014, o acórdão Tele2/Watson, em 2016. O que o TJUE disse foi que não é aceitável termos um regime que obriga à conservação de todos os metadados de todas as comunicações de todos os cidadãos. Isso constitui vigilância massiva sobre a população. O TJUE decide com base na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, um documento que nenhuma maioria da Assembleia da República - nem 100% - pode alterar, que é vinculativo para a ordem jurídica portuguesa, tal como aliás são as decisões do TJUE. O primeiro-ministro e o presidente procuram saída para este dilema. Mas qual é o sentido de alterar a Constituição? Alterar o quê, para que efeitos? Para a tornar incompatível com a Carta dos Direitos Fundamentais da UE?
Quais as principais ameaças que identificam?
Neste momento, a maior é mesmo a clara noção de que continua a existir um grande interesse em permitir o armazenamento e acesso total aos dados referentes à vida privada de cada pessoa. Abundaram relatos de que viria o caos total nos tribunais e a consequente libertação de inúmeros criminosos, que parecem profundamente exagerados e padecem de qualquer número concreto, apenas acenados como ameaça sistémica. O apelo desonesto aos medos mais fundamentais das pessoas não é a forma certa de lidarmos com os problemas complexos da sociedade.
O equilíbrio entre direitos fundamentais e segurança é cada vez mais premente. Estamos a caminhar no sentido certo?
Infelizmente, não. Constatamos que na grande maioria dos temas da sociedade relacionados com a segurança, especialmente quando envolvem uma componente digital, persiste uma linha dura dedicada a desgastar os direitos fundamentais das pessoas com base em ameaças vagas à segurança coletiva. Encontramos essa linha nos comentadores televisivos alarmistas, e também nos órgãos de poder. É por isso que a D3 continuará empenhada em manter um debate público sobre o digital, a segurança e a sociedade que não seja só dominado pela desinformação do comentariado alarmista.