Tribunal Constitucional chumbou lei que manda operadoras conservarem dados sobre a localização de telemóveis. Processo da morte de rapper Mota JR. pode ser a primeira vítima.
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Um arguido condenado a 23 anos de prisão, pela coautoria do homicídio do rapper Mota JR., acaba de interpor um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em que pede para ser absolvido, com fundamento no recente acórdão do Tribunal Constitucional (TC) que declarou a inconstitucionalidade da chamada lei dos metadados. Temendo os efeitos catastróficos que este acórdão pode ter sobre muitos processos criminais, a procuradora-geral da República, Lucília Gago, já pediu ao TC que declare a sua nulidade ou, pelo menos, que só produza efeitos para o futuro.
O recurso junto do Supremo foi entregue pela defesa de João Luizo. Para o tribunal que o condenou, ficou provado que, a 15 de março de 2020, o arguido e dois cúmplices montaram uma emboscada à porta de casa da vítima para a roubar. Como Mota resistiu, foi sequestrado e agredido mortalmente.
Entre outros fundamentos, o recurso, assinado pelo advogado António Jaime Lopes Pereira, argumenta que João Luizo foi condenado por prova recolhida de forma ilegal, com recurso a metadados, fornecidos sem mandado prévio de juiz. Para a defesa, se for eliminada a prova proibida (os dados das comunicações efetuadas e os registos de localização), "não existe nos autos qualquer tipo de prova que coloque o arguido na área do crime, no dia e hora do mesmo nem no dia seguinte".
Aliás, sem aqueles registos, não há qualquer prova de que João Luizo tenha comunicado com os outros arguidos ou sequer entrado na casa da vítima para a roubar, pelo que se requer a sua absolvição, sustenta o recurso.
Vários casos em risco
A decisão do Constitucional causou um terramoto no mundo da justiça. Teme-se que milhares de processos criminais estejam em risco com a aplicação retroativa da inconstitucionalidade da lei dos metadados, muito usados pelas autoridades na investigação da criminalidade violenta.
A própria procuradora-geral da República suscitou a nulidade da decisão ou, pelo menos, que o TC restrinja a sua eficácia a processos futuros. O TC já informou que vai analisar os argumentos de Lucília Gago, mas, tendo em conta que a decisão foi subscrita por 11 dos 12 juízes do TC, é pouco provável que este recue.
A professora da Faculdade de Direito de Coimbra Vera Lúcia Raposo não acredita sequer na satisfação relativa à retroatividade. "Percebo que gera inúmeros problemas, mas não podemos esquecer a regra de direito. Não vejo grandes motivos para não se aplicar a retroatividade", afirma, mesmo reconhecendo que o TC tem a faculdade de determinar que a sua decisão só vale para o futuro. A decisão em que declarou a inconstitucionalidade do anonimato dos dadores de esperma e óvulos, por exemplo, só afetou doações futuras. Assim, não se frustraram as expectativas legítimas de anonimato de quem já tinha efetuado doações.
No caso dos metadados, a decisão dos juízes do TC veio, em teoria, dar mais direitos aos arguidos, pelo que se torna mais difícil excluir a sua retroatividade, que é a regra das declarações de inconstitucionalidade.
Vera Lúcia Raposo admite, porém, que não sejam afetados tantos casos como se julga. "É preciso provar que os metadados foram a prova fundamental e não apenas uma das provas usadas no processo", explica a académica.
OUTROS CASOS
Incêndio mortal na Baixa do Porto
Um empresário chinês foi condenado a 25 anos de prisão por ter ordenado um incêndio que viria a matar um homem de 55 anos. Entre as provas mais relevantes estão as comunicações mantidas pelo arguido com os supostos executantes e a localização dos respetivos telemóveis.
Roubos violentos - Geolocalizações
Em casos de assaltos, é frequente as autoridades recorrerem às localizações dos telemóveis dos suspeitos para comprovar se estavam juntos nas imediações dos locais dos crimes e para apurar as rotas seguidas.
Burlas na net - IP e emails cruciais
Em casos de burlas através da Internet e das redes sociais, que envolvem centenas e milhares de crimes, é determinante para as investigações conseguir, de modo rápido e fácil, monitorizar quem emitiu as mensagens fraudulentas, quando as emitiu e a partir de que local. Sem usar metadados, a tarefa será extremamente difícil para não dizer impraticável.