Luís Azevedo Mendes: "Há um desconforto grande em relação às decisões disciplinares"
Luís Azevedo Mendes, de 64 anos, lidera uma das duas listas que vão disputar, em 12 de abril, os lugares de vice-presidente de seis vogais do Conselho Superior da Magistratura (CSM), órgão composto por 17 elementos e presidido, por inerência, pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
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Presidente da Relação de Coimbra entre 2017 e 2022, Azevedo Mendes tomou posse como juiz conselheiro do Supremo a 27 de fevereiro último e, no mesmo dia, anunciou a candidatura à vice-presidência do órgão de governo e disciplina dos juízes. "Confiança. Credibilidade. Justiça." Este é o lema com que se propõe convencer os seus pares da necessidade de mudanças que acabem com processos disciplinares "inconcebíveis", ou acelerem as promoções aos tribunais de Relação e ao Supremo, onde os juízes chegam demasiado tarde e, sobretudo no último, não ficam tempo suficiente para produzir jurisprudência de referência. Em entrevista ao JN, declara também que o seu adversário, Afonso Henrique, chefe de gabinete do atual vice do Conselho Superior da Magistratura (CSM), não terminará o mandato, por ter já 69 anos.
Na carta de apresentação da sua candidatura, defende uma "definição clara do Conselho como governo do poder judicial, trincheira da independência externa". Parece que os tribunais andam a toque de caixa do poder político. O seu adversário já disse que é uma crítica sem conteúdo. Em que ficamos?
Queremos um Conselho que supere o arcaísmo que o definiu, ainda no pré-25 de Abril, como um órgão essencialmente disciplinar. Hoje o seu modelo de gestão deve passar pela participação ativa na governação do poder judicial. Falamos da aquisição de competências na intendência dos tribunais, no suporte à atividade judicial, na organização, nos equipamentos, nas plataformas informáticas.
Se fala em montar uma trincheira, é porque há ameaça.
Se houver ataque, há ali uma defesa. Não quer dizer que isso exista neste momento, não há. E até lhe digo mais: nesses momentos críticos, de defesa da independência, o associativismo dos juízes tende a responder melhor. Porque o CSM é composto por uma maioria de vogais laicos, digamos, não eleitos pelos juízes. Agora é muito importante é na garantia da independência interna, que se manifesta no ato de julgar, na marcha do processo. A decisão que tem de ser respeitada é a do juiz.
"Todos os dias há tentativas de intrusões [no sistema informático dos tribunais], há sempre uns miúdos a tentar entrar na coisa. Só que nunca sabemos até que ponto, quando há fugas de informação, elas têm origem nesses ataques ou não."
Há aí algum desconforto sobre a ação disciplinar do Conselho?
Sim, há um desconforto grande em relação às decisões disciplinares. Há processos inconcebíveis, impróprios. Questões pequeninas, que deviam ser tratadas de outra forma. Um exemplo concreto. Uma juíza, numa manhã, sente-se indisposta. Continua a trabalhar na tramitação dos processos, mas adia um julgamento. Foi-lhe perguntado porquê, ela disse que se sentiu indisposta. Foi levantado um processo disciplinar e ela foi sancionada. Não acreditaram nela. Ao que chegámos. Isto é profundamente ridículo.
O senhor também foi alvo de ação disciplinar, quando chamou "emplastro" ao IGFEJ [instituto dependente do Ministério da Justiça, que gere o sistema informático Citius]?
Não chegou a haver inquérito. O presidente do conselho diretivo do IGFEJ achou que devia defender a honra dos seus funcionários e fez uma participação disciplinar. Foi arquivada imediatamente. E por uma razão muito simples. Todos pensavam aquilo que eu penso, só que ninguém disse aquilo que eu disse.
E mantém aquelas palavras? Na altura disse que havia todos os dias intrusões indevidas no sistema informático dos tribunais.
Não foi por causa disso que eu falei aquelas palavras.
Associou uma coisa à outra.
Não. Falei que todos os dias há tentativas de intrusões, há sempre uns miúdos a tentar entrar na coisa. Só que nunca sabemos até que ponto, quando há fugas de informação, elas têm origem nesses ataques ou não.
Dessa perspetiva, devia ser o Conselho a gerir o sistema informático dos tribunais?
Isso é absolutamente essencial. Aliás, a lei de tratamento de dados referente ao sistema judicial foi vetada há três anos pelo Presidente da República justamente por não garantir isso. Não garantia o domínio proprietário por parte do poder judicial.
"Em situações graves, eventualmente até noutras, a instauração e conclusão do processo disciplinar não deve ficar dependente do penal."
Deixe voltar à disciplina, por isto: nos últimos anos, o Conselho afastou juízes que eram arguidos em processos-crime mas ainda não tinham sido julgados. Como olha para essa opção?
Essa opção está correta. O estatuto torna o procedimento disciplinar independente de outro tipo de procedimentos.
O processo disciplinar do juiz Rui Rangel foi instruído com matéria do inquérito-crime.
Em certo nível da evolução de um processo, tem de haver comunicação mais ou menos rápida. Mas eu não tenho acesso a tudo para dizer se concordo inteiramente com o que se passou. O que digo é: em situações graves, eventualmente até noutras, a instauração e conclusão do processo disciplinar não deve ficar dependente do penal.
Diz na sua carta que preconiza critérios inibidores das aparências de nepotismo. O que quer isto dizer?
Estou a dizer que quando existe um programa legal relativamente, por exemplo, a comissões de serviço, concursos para relações, para o Supremo, para inspetores, para cargos internacionais, ele tem que ser integralmente cumprido. Integralmente cumprido significa explicado. Tem que ter fundamentação convincente. Senão, surgem as aparências de nepotismo e cria-se desconfiança e distanciamento em relação ao órgão.
"Não deve haver a apologia dos generais que chegam, picam o ponto e passam à reserva."
Acaba de subir a conselheiro do STJ. Sente que já devia ter subido antes?
Hoje ninguém chega ao Supremo antes dos 63, 64 anos.
Isso é um problema?
É o maior problema. Mas parece que ainda ninguém percebeu. Até agora, todos os conselheiros de referência, pela jurisprudência e pelas opiniões, estavam no STJ 15, 16, 17 anos. Agora, a média de permanência no Supremo é de 15, 16, 17 meses. E, portanto, não é possível este tribunal ser a referência que era antes. Há medidas que têm que ser tomadas urgentemente para atacar o envelhecimento da magistratura. Isso passa-se agora no Supremo, mas acontece já nos tribunais de Relação. Antes chegava-se a um tribunal de relação com 45, 46 anos, agora com 54, 55 anos. A idade de jubilação é aos 65 anos, 40 de serviço. Portanto, está a ver que a estabilidade nas Relações e no Supremo é zero.
Isso não é a apologia do país dos generais?
Não, o que eu estou a dizer é que não deve haver a apologia dos generais que chegam, picam o ponto e passam à reserva.
Se há promoções mais cedo, a primeira instância fica desguarnecida.
Não é saudável que um juiz esteja na primeira instância mais de 25 anos. A partir de certo momento, começam a observar rotinas, porque já aprenderam muito, e a rotina quebra no olhar ingénuo sobre os factos, ou seja, sem preconceitos. Esse olhar ingénuo é muito útil e, ao fim de 25 anos, desapareceu.
Mas a primeira instância tem gente suficiente?
Não. O Centro de Estudos Judiciários não tem capacidade para recrutar mais de 150, 160. Haverá um desdobramento agora para Vila do Conde, vamos ver o que o futuro nos trará. Não há juízes para o Supremo, para relações e para a primeira instância. Temos que nos preparar a cinco, dez e quinze anos, para vermos as possibilidades de recrutamento e de compensação das graves falhas que se aproximam - assessoria nas relações, otimização das plataformas informáticas, inteligência artificial...
"Se uma pessoa avança para o mandato, é para executar um programa a quatro anos. E é nela que as pessoas vão votar e confiam para executar esse programa."
O seu adversário, com 69 anos [a idade-limite da jubilação dos juízes é de 70 anos], pode levar o mandato de 4 anos até ao fim?
Eu acho que não. Aliás, ninguém acha que pode. Mas louvo-lhe a coragem de, com aquela idade, querer avançar.
Ele já argumentou que o vice-presidente do CSM não exerce funções jurisdicionais.
Lembra-se do procurador-geral Pinto Monteiro, que também quis ficar além dos 70 e disseram-lhe que não? Se o problema neste momento é o envelhecimento, uma solução dessas é um péssimo sinal.
Se ele for vice-presidente aos 70, o Plenário do CSM há de se pronunciar e ele pode ser substituído, é para isso que servem os suplentes.
Mas alguém se apresenta às eleições com essa dúvida terrível? Se uma pessoa avança para o mandato, é para executar um programa a quatro anos. E é nela que as pessoas vão votar e confiam para executar esse programa. E, portanto, isso não é leal para o eleitorado.
Como é que os juízes, dos contactos que têm feito em campanha, olham para a questão?
Pedem-me insistentemente que fale no assunto, acham que é positivo para a campanha. Eu recuso-me, quero fazer uma campanha pela positiva.
Que lista é a sua? Há proximidade com a Associação Sindical dos Juízes Portugueses [ASJP]?
Eu conheço o doutor Manuel Soares [presidente da ASJP] há muitos anos, tenho um percurso com ele, mas, por exemplo, também tenho com o atual vice-presidente, Sousa Lameira. Fizemos parte do mesmo Conselho no princípio deste século. Se me disser que tenho mais proximidade com o Manuel Ramos Soares, com certeza. Agora, que o Manuel Ramos Soares não me apoia, porque é presidente da Associação, isso ele já o disse. E é legítimo que assim seja, a Associação é a única Associação e tem juízes de todas as tendências.
Cargos governativos, sou contra. Um juiz que assume um cargo do Governo coloca-se numa situação de vulnerabilidade...
"Cargos governativos, sou contra. Um juiz que assume um cargo do Governo coloca-se numa situação de vulnerabilidade..."
O Conselho tem em discussão uma proposta para impedir que os juízes que exerçam funções políticas regressem à magistratura. Qual é a sua posição?
Nunca aceitei cargos de nomeação por parte do poder político. Dito isto, não tenho posições fundamentalistas relativamente a essa matéria.
Isso significa o quê?
Que eu sou muito crítico relativamente a comissões de serviço que não interessem de todo à governação do poder judicial.
Isso inclui cargos governativos?
Cargos governativos, sou contra. Um juiz que assume um cargo do Governo coloca-se numa situação de vulnerabilidade...
É isso que está em cima da mesa.
Há outros cargos da governação que não são estritamente políticos. Por exemplo, diretor-geral da Administração da Justiça é um cargo que sempre foi exercido por um juiz. Porque toca na intendência do poder judicial, há ali algum respiro. A melhor solução era esta Direção-Geral estar integrada no CSM. Não o estando, é útil que nesses cargos estejam juízes. Como, por exemplo, no Conselho de Oficiais de Justiça, no Centro de Estudos Judiciários. Agora há outros cargos em que o juiz não tem que estar. Por exemplo, na Polícia Judiciária, porquê um juiz?
Ou seja, acha possível uma solução equilibrada...
Na análise do consentimento necessário que o CSM tem que dar para as comissões de serviço, tem que estar presente esta avaliação. E não vale a pena afinar a lei, se o critério interno for seguro. Eu sei que dá muito jeito ao governo, à governação, ter um campo de recrutamento de juízes. Não necessariamente para fazer interferências na independência, mas simplesmente porque um juiz diretor-geral, ou inspetor-geral de qualquer coisa, fica bem nesses cargos. E porque os salários são altos, podem manter salários de origem. Os salários na administração pública não são tão altos.
"O juiz [de instrução do processo BES] está escolhido, confiamos naquele juiz. Não vamos, antes de ver os resultados, começar a fazer as críticas. Eu lembro que, em pleno processo da Casa Pia, a questão da falta de experiência também se colocou."
Há pouco tempo, o poder político acabou com o Tribunal Central de Instrução Criminal, de que parece nunca ter gostado muito, com o apoio mais ou menos velado dos juízes, incluindo da Associação Sindical. Logo a seguir, o resultado apresentou-se de forma caricatural, com um juiz com dois anos de experiência a assumir talvez o maior e mais complexo processo da justiça portuguesa (o caso BES). Fizeram bem em acabar com o "Ticão"?
A minha posição relativamente ao "Ticão" é a mesma em relação aos outros. Antigamente, os TIC, na maior parte do país, tinham um juiz. [No "Ticão"] foi criado outro lugar, mas mesmo assim a imagem que ressaltava era que a escolha do juiz seria mais ou menos controlável. E, portanto, é preferível que existam mais juízes, para impedir a escolha do juiz.
Diz-me que, mesmo com dois juízes, persistia um problema de confiança. Mas que confiança dá um tribunal que entrega o caso BES a um juiz com dois de experiência?
O juiz está escolhido, confiamos naquele juiz. Não vamos, antes de ver os resultados, começar a fazer as críticas. Eu lembro que, em pleno processo da Casa Pia, a questão da falta de experiência também se colocou. E surgiram, da parte, sobretudo, dos altos patamares da governação da magistratura, propostas de alteração da lei, de forma que todos os juízes de instrução criminal fossem desembargadores. Teriam anos de serviço, teriam cabelos brancos... Vamos agora reagir desta forma?
Não há um caminho de especialização feito no Ministério Público que também devia ser feito nos tribunais?
A resposta está na Constituição. É possível criar tribunais específicos em função da complexidade dos processos, mas não em função da categoria de crimes.
E não é possível encontrar uma solução?
Em face da Constituição, não. A memória da existência do Tribunal Plenário, antes do 25 de Abril, é demasiado forte para que isso aconteça.
Não é ainda o momento?
Não é o momento, e não sei se o será alguma vez. Estamos a falar de determinados processos, para um tribunal onde poderão estar poucos juízes.
"Eu acho que o Ministério da Justiça está sensível à resolução do problema dos oficiais de Justiça. Provavelmente, o bloqueio será no Ministério das Finanças."
A greve dos oficiais de justiça está a causar muitos adiamentos?
Muitos, de facto. Aliás, a minha campanha eleitoral tem beneficiado com isso, porque eu vou aos tribunais e os juízes estão disponíveis para se reunirem comigo e para eu falar.
Há alguma coisa que os juízes possam fazer por eles?
Qualquer juiz acha que os oficiais de justiça têm razão. O estatuto do oficial de justiça devia ter sido revisto antes de 2008, da lei orgânica dos tribunais judiciais. Saiu aquela experiência piloto, o estatuto continuou por ser alterado. Veio a lei de 2014, [o mapa judiciário] foi alterado... Ao menos que fosse alterado antes dos estatutos dos magistrados oficiais e do Ministério Público. Não! Estamos em 2023 e continuamos com isto.
Tudo avançou menos o estatuto deles.
Que era a primeira coisa que devia ter avançado, em todo o pacote de reformas.
Eles dizem que são o parente pobre do sistema.
Se eles dizem isso, naturalmente têm razão.
Os juízes, o CSM, não podem exercer magistratura de influência?
A única coisa que poderão fazer é sensibilizar, que o assunto deve ser resolvido. Mas eu acho que o Ministério da Justiça está sensível à resolução do problema dos oficiais de Justiça. Provavelmente, o bloqueio será no Ministério das Finanças.