Afonso Henrique: Há juízes a sentirem-se "injustiçados" porque "não deram aulas"
Juiz há 40 anos e candidato a vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM) nas eleições de 12 de abril de 2023, Afonso Henrique, de 68 anos, é defensor de uma maioria de juízes no órgão de gestão dos magistrados judiciais. Adepto da fusão entre o Tribunal Central de Instrução criminal ("Ticão") e o Tribunal de Instrução Criminal (TIC) de Lisboa, o conselheiro propõe a mudanças nas regras em vigor, para que juízes pouco experientes não assumam processos complexos. Sobre a idade, diz que é um "falso tema".
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Anunciou a sua candidatura já depois de o atual vice-presidente do CSM, José Sousa Lameira, ter expressado a sua preocupação por não existirem candidatos. Foi uma resposta a esse apelo?
Não. As candidaturas surgem naturalmente, como surgiu também, de certeza, a do meu colega. Todos nós sabíamos que a candidatura estava a ser preparada. O essencial era não haver uma única candidatura e podermos debater ideias. Temos ideias, em muitos casos, diferentes.
É chefe do Gabinete de Apoio ao vice-presidente e outros membros do CSM. Será um debate entre a mudança e a continuidade?
Não. A única pessoa que estava neste Conselho e que está nesta candidatura sou eu. E não tive funções de membro: tenho funções organizativas. O cargo não é da confiança do vice. Se os colegas não me conhecessem da magistratura há 40 anos, podia parecer uma continuidade. Mas tenho ideias próprias.
Na sua carta de apresentação, insiste na importância de preservar a independência dos juízes. Quais são as ameaças que sente?
Nós estamos no mundo e na Europa em particular. Temos o problema de intervenção do poder político na Hungria, Polónia, situações gravíssimas. Nada é adquirido. Nós entendemos que o CSM deve ter uma maioria de juízes. Porquê? Neste momento não temos problema nenhum. Agora, temos de pensar em abstrato. Em abstrato, pode haver interferência do poder político. Eu sou a favor de haver designados pela Assembleia e pelo presidente da República. Só estamos a falar se devemos ter mais um ou não. O presidente da República [Marcelo Rebelo de Sousa] designou, na quota que tem de dois membros, uma juíza conselheira. Acho que foi sensível ao facto de haver uma maioria de juízes. [A maioria] existe, mas está dependente do presidente da República que temos.
Outra ideia que defende é que, na graduação e promoção de juízes, deve valorizar-se mais o exercício de funções em detrimento de pós-graduações ou participações em conferências. Porquê?
Penso que é de senso comum. O que se pretende de um juiz desembargador ou conselheiro? Que seja um juiz com mérito. Há muitos colegas que se consideram injustiçados porque não têm uma pós-graduação, um doutoramento, não deram aulas. Estamos a falar de pessoas que, quando vão para a Relação, têm mais de 20 anos de serviço e, quando vão para o Supremo, mais de 35. Quando se avalia um professor, o que se pede? As conferências que deu?
Faz então sentido que haja no Tribunal Central de Instrução Criminal juízes inexperientes em processos complexos? A instrução do BES está com um juiz com dois anos de profissão.
O problema é que nós temos de ter regras prévias. E nós temos na regra que as pessoas têm de concorrer [aos lugares]. Ou seja, o Conselho não pode dizer a um juiz: "o senhor está aqui, agora vai ter de ir para o 'Ticão'". Agora, a nível abstrato, eu também sinto isso como juiz. [Nesse caso], concorreu um juiz extremamente experiente. Só que estava numa comissão judicial, como presidente da Comarca [de Lisboa] e entrámos nas regras de substituição, que, se calhar, temos de rever. A pessoa não poder ser substituída, por exemplo, por um juiz que não tenha pelo menos dez anos de serviço e classificação de mérito.
Os juízes do Porto, Aveiro e Braga não têm o mesmo mérito? Têm.
Três dois oito juízes do "Ticão" são hoje substitutos. A fusão com o TIC de Lisboa foi acertada?
A questão foi estudada. Não justificava, primeiro, haver só um juiz e, depois, só haver dois. Acho que o próprio princípio do juiz natural obrigava a que houvesse mais juízes. E essa reforma foi positiva. Foi uma reforma em que se pensou alargar a distribuição a mais juízes. E permitir que a instrução dos crimes também graves pudesse ser feita noutros tribunais. Para se ser juiz de instrução tem de se ter pelo menos dez anos e classificação de mérito. Os juízes do Porto, Aveiro e Braga não têm o mesmo mérito? Têm.
Uma das áreas de especialização do "Ticão" era a criminalidade económico-financeira mais complexa, incluindo a corrupção. Nos últimos anos, a própria magistratura judicial não terá estado imune a esta criminalidade, exposta no processo Operação Lex. O CSM decidiu expulsar o juiz Rui Rangel e aposentar compulsivamente a juíza Fátima Galante antes de existir uma condenação nos tribunais. É uma prática a manter?
Sim. Quando estamos a falar de processos disciplinares estamos a falar da violação do próprio Estatuto, dos deveres que os juízes têm. A parte criminal exige que se preencha os requisitos dos crimes em causa. Se o Conselho entendeu que esses deveres foram violados, pode aplicar uma pena disciplinar, que é completamente autónoma de uma pena criminal. A pena criminal tem a ver com o crime. Vamos ver se há crime ou não, ainda está a ser discutido. Há situações [da pena disciplinar] que já transitaram em julgado, o que significa que passou no crivo de vários tribunais.
Oficiais de justiça são "fundamentais"
Está em curso uma greve prolongada de funcionários judiciais. É juiz há 40 anos. As reivindicações são pertinentes?
Não estou a par exatamente das reivindicações. O que posso dizer é que os oficiais de justiça são fundamentais nos tribunais. Nenhum juiz consegue trabalhar num tribunal sem ter bons funcionários. A função do oficial de justiça está a ser desvalorizada. É a minha opinião, com a experiência que tenho. Conheço oficiais de justiça que já estão a fazer 14, 15, 20 anos [de serviço] e ganham exatamente o mesmo. Está a retardar tempo demais o estatuto dos oficiais de justiça. [Na minha carta de apresentação], eu também falo da informatização e acho que a informatização é necessária. Mas é uma ferramenta. O oficial de justiça não pode ser substituído por uma ferramenta. Há depois questões que têm que ver com as garantias do cidadão e, por um exemplo, um julgamento. A falta de funcionários é impressionante.
Apesar disso, parecem estar a lutar sozinhos. Não deveria, atendendo ao que disse, haver solidariedade da parte dos juízes?
Eles dependem do Ministério da Justiça, não do juiz. É uma questão que se pode pôr, foi uma opção. Só que nós, juízes, somos titulares de órgãos de soberania. Eu posso dizer o que penso. Não podemos, a esse nível, estar a fazer declarações públicas. Outra coisa é a Associação [Sindical] dos Juízes [Portugueses]. É uma diferença entre o sindical e o Conselho.
Celebra 70 anos, idade de jubilação, em julho de 2024...
Esse tema é engraçado, porque é um falso tema. O que é que se exige para uma pessoa se candidatar a vice-presidente? Ser conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, não é a idade. Isso é veiculado nitidamente pela outra lista. Pode-se fazer muita coisa até aos 70 anos. As listas preveem suplentes. É obrigatório. Pode haver até uma incapacidade, como em qualquer profissão. Há a possibilidade de o plenário entender que eu posso continuar em funções quando fizer 70 anos, porque é uma função de natureza administrativa, ao contrário do que acontece com o presidente do Supremo Tribunal de Justiça [líder por inerência do CSM], que tem funções jurisdicionais.
Admite que, se não for eleito, pode não cumprir os quatro anos do mandato?
Sim. Mas é dramático? Critico a crítica, porque têm uma noção de que o CSM não é um órgão colegial. O vice-presidente tem um voto no plenário. [Este e os restantes seis eleitos, pelo método de Hondt, pelos pares] são completamente autónomos quando estão no plenário, independentes. Há um que, daqui a dois anos, tem 70 anos, a lei prevê que possa ser substituído até por vontade própria dele. Ele pode dizer: "acho que vou jubilar-me". Qual é o drama? Ou então o Conselho e as circunstâncias dizem: "não, você deve ficar até aos 72 anos" e o plenário legalmente entende que sim, como pode entender que não. Qual é o drama? Acho que o problema é mais não terem previsto uma segunda lista. Se calhar o drama está mais aí.
Na terça-feira: entrevista ao ex-presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, Azevedo Mendes, também candidato à vice-presidência do CSM