Ministério Público quer "tolerância zero" para mãe que autorizou mutilação genital
O Ministério Público (MP) apelou a que exista "tolerância zero" à mutilação genital feminina e pediu ao coletivo de juízes do tribunal de Sintra que a primeira pessoa a ser julgada em Portugal pela presumível prática, no ano passado, daquele crime seja punida com prisão efetiva, sem precisar a duração da pena.
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R. D., de 20 anos e residente na Amadora, é suspeita de ter consentido que a sua filha, então com um ano e sete meses, fosse cortada durante uma estadia de três meses na Guiné-Bissau, de onde é natural. A arguida rejeita a acusação e o seu advogado, Jorge Gomes da Silva, defendeu que, mesmo que o ilícito tenha acontecido, o facto de ter sido julgado é suficiente para dissuadir a jovem de reincidir. O crime é punível com pena de cadeia entre dois e dez anos. A decisão é conhecida a 8 de janeiro.
Durante as audiências, R. D. garantiu ser contra a mutilação genital feminina e atribuiu a inflamação detetada na zona genital da bebé - que a própria transportou ao centro de saúde, dias após voltar a Portugal - a uma irritação causada pela fralda e pelo calor sentido na Guiné-Bissau. Mas os argumentos não convenceram a magistrada do MP no julgamento.
"não faz sentido"
Para Cármen Ferreira, "não faz sentido" que a jovem não se tenha apercebido do sangramento causado pelo corte que a menina sofreu, confirmado pela perícia médico-legal. E estranhou que, sendo contra, nunca tenha desejado saber quem mutilou a criança.
A procuradora identificou ainda contradições entre os depoimentos prestados na fase de inquérito e em julgamento. Anteriormente, a mulher alegara que, durante a estadia no seu país natal, nunca se separara da filha. Já em tribunal, admitiu que a deixou com outras pessoas em duas ou três ocasiões, incluindo durante um dia inteiro.
"Perguntaram-me se tinha ficado a dormir com alguém e eu disse que não, que não dormiu com ninguém", explicou, ontem, R.D. "Eu não deixo que ninguém toque nela. Eu dou a vida pela minha filha", assegurou mais tarde a arguida, também mutilada na infância.
"Não se trata de uma delinquente, de uma pessoa degenerada. Luta todos os dias para respeitar as regras portuguesas", frisara já o seu mandatário. Gomes da Silva lembrou, também, que um dia não chega para consumar aquela prática, que, precisou, nos moldes em que foi identificada no relatório médico (ler caixa), nem sequer é praticada na Guiné-Bissau.
Crime desde 2015
A prática da mutilação genital feminina, frequentemente considerada um rito de iniciação, varia de país de país. Em Portugal, é crime desde 2015. Na Guiné-Bissau é desde 2011.
Quase 400 casos
Entre 2014 e fevereiro deste ano, as autoridades nacionais registaram 394 casos, a maioria praticados no passado e fora do país. Este é o primeiro a ser julgado.
Milhões de vítimas
A estimativa é de que, a nível mundial, haja 200 milhões de vítimas desta prática. Quase sete mil viverão em Portugal há mais de 15 anos.