A pandemia da covid-19 gerou medo nas pessoas e fez aumentar o número de crimes relacionados com a violência doméstica, maus-tratos a crianças e abusos sexuais em contexto familiar. A certeza é de Carlos Poiares, psicólogo e professor universitário que também não tem dúvidas que o confinamento social contribuiu para o maior consumo de álcool, drogas, inclusive ansiolíticos e antidepressivos, e jogo online. Por tudo isto, torna-se imperioso, alega, uma aposta intensa na saúde mental dos portugueses.
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Que consequências terá esta pandemia, e o período de confinamento a que ela obrigou, na saúde mental dos portugueses?
A pandemia gerou medo nas pessoas. Todas as notícias provindas do mundo eram tendencialmente catastróficas, com elevados índices de letalidade, de contaminação e, enquanto tal, criou ondas acentuadas de receio.
Concomitantemente, não tardou a que se agitassem papões, reais ou quixotescos: a crise económico-social, reforçando as imagens ainda bem presentes da outra crise e do vandalismo da troica, que se consubstanciaram nos cortes abusivos de salários e pensões. A instauração do regime de lay off, que terá sido a solução possível, significa corte de vencimento e, logo aí, se reinstalaram os fantasmas ainda frescos na memória coletiva. Depois de um ciclo de retoma e de reposição de rendimentos, eis que um vírus mortal vinha desestabilizar o que se pensava adquirido e a austeridade espreitava de novo, com a ameaça do desemprego e da precariedade.
Acrescendo a tudo isto, a transição para o teletrabalho, desejado por uns, renegado por muitos, que se viram agarrados ao cenário doméstico sem o desejarem, privados de convívio e de rotinas que o trabalho implica. Nem todos possuem casas confortáveis, espaçosas, amplas e aquilo que constituía o local de permanência reduzida, pois o emprego ocupa muito tempo, passou a ser a residência forçada, em condições por vezes complicadas e em partilhas a que muitos cidadãos (casais, filhos, famílias alargadas) não estavam habituados. Foi preciso reinventar a vida familiar, com abandono, ainda que temporário, das relações profissionais, de amizade ou de maior intimidade fora das portas da casa de morada.
Quais são os efeitos de todas estas mudanças?
Não se passa impunemente por mudanças tão radicais e bruscas, ainda para mais com ameaças a pesar, como o desemprego (em muitos casos já não apenas ameaçado, antes concretizado), a perda de um terço de ordenado, a conversão do trabalho com despesas por conta do trabalhador (mais gastos de eletricidade e água, de internet e de material consumível).
Nesta situação, é natural que, em termos de saúde mental, se manifestem as consequências, até porque tudo se passou num curto lapso temporal e com as televisões e demais média inundados por notícias sobre a covid-19, com estatísticas de mortos e contaminados, de possíveis insolvências e regresso da crise, de austeridades para todos os (des)gostos de quem trabalha. E os opinadores, em lugar de securizarem as pessoas, foram, múltiplas vezes, arautos de desgraças vindouras, chegando alguns ao ponto de estimarem números de infetados em final de março que só se atingiram dois meses depois.
Já há evidências científicas que a população portuguesa sofreu abalos na sua saúde mental devido à atual pandemia?
Ainda não há dados fiáveis, há suspeitas. É previsível que tenham disparado os consumos de álcool e de substâncias ilícitas, o que não é incomum em quadros de crise. E que o álcool consumido tenha transitado da cerveja e do vinho para bebidas mais fortes, logo severizando a adição dos utilizadores. O mesmo é de recear no concernente à automedicação com ansiolíticos e antidepressivos, de que somos detentores de elevadas cifras de consumo, agravadas em contextos críticos. Concomitantemente, o jogo patológico, estimulado por publicidade televisiva que há muito deveria estar proibida, especialmente no que tange a casinos virtuais, incutindo a adição mediante ofertas de créditos iniciais.
Os tempos próximos encarregar-se-ão de mostrar a verdadeira dimensão deste problema, mas será de recear que haja consequências na generalidade dos segmentos etários e é expectável que os maus ambientes vivenciados gerem perturbações em muitas pessoas. Alteraram-se, ou desfizeram-se, rotinas, desde as dos trabalhadores às das crianças e jovens em idade escolar, remetidos que foram para aulas à distância, ou via televisão, cujos efeitos serão analisados mais tarde. E não penso unicamente no aproveitamento, quiçá a parte mais pacífica, mas na interrupção, ou mesmo perda, de vínculos com colegas e amigos.
Tendo em conta que todos os estratos da população foram afetados de alguma forma com os efeitos do período de confinamento quem foram, no entanto, as principais vítimas?
As crianças arredadas do convívio com amigos - e já tivemos exemplos, um deles gravíssimo - e os idosos, nos lares, onde as taxas de contaminação e de mortalidade foram muito elevadas, acrescendo o reforço do abandono familiar, agora involuntário. O quadro de pandemia implicaria sempre a necessidade de maior presença dos filhos e netos, porquanto seria securizante para os mais velhos poderem ver os familiares e assegurarem-se que estavam bem, mas as condições de prevenção não o permitiram. Isto é compreensível para as pessoas de outras faixas etárias, mas não para cidadãos já há muito confinados a paredes de lares, quando não a quartos e camas.
Também são vítimas, de uma maneira geral, os assalariados que perderam o emprego ou foram remetidos para o lay off, com diminuição de salários, e, particularmente, os ainda existentes trabalhadores precários, os pequenos e médios comerciantes, industriais e profissionais liberais e os recibos verdes, que, de um dia para o outro, viram empresas e escritórios encerrados e sem receitas.
Quem se queixa estando no mesmo cenário de vida que o agressor?
Existindo, como já diagnosticou, uma "overdose familiar" e uma incapacidade para gerir as relações familiares considera que o fenómeno da violência doméstica cresceu neste período?
Instituí, na Universidade Lusófona, em 2015, o Gabinete de Apoio à Integração de Alunos (GAIA), que atende pedidos de consulta de alunos ou trabalhadores, cujo raio de ação é frequentemente alargado a pessoas externas e, de harmonia com as informações que me chegam, as questões familiares diminuíram drasticamente durante o confinamento. Causa? Quem se queixa estando no mesmo cenário de vida que o agressor? Outras instituições, operando no âmbito do apoio a vítimas de crimes domésticos, referem o mesmo, o que é consistente com a possibilidade de as cifras negras terem disparado. Desde que os trabalhos foram retomados, sabemos que as instâncias que prestam consulta, apoio ou acompanhamento estão a começar a registar aumento dessas situações e no GAIA isso é visível.
Na PSIJUS - Associação para a Intervenção Juspsicológica, entidade técnico-científica e socioprofissional da área da Psicologia Forense, que cofundei em 2001, verifica-se, pelos reportes das psicólogas que estão no terreno, idêntico movimento: só agora ressurgiram os casos de desconfortabilidade e violência psicoafectivas. Afinal, como era de esperar, o confinamento não trouxe paz nem harmonia, limitou-se a interditar o acesso à denúncia.
O mesmo poderá ter sucedido com os crimes sexuais em contexto familiar?
Aguardo com expectativa o que nos dirá o futuro. Ainda é cedo para que esses casos cheguem junto dos tribunais, mas temo que tenha havido aumento, principalmente em contextos familiares onde já se manifestara anteriormente.
Lembremo-nos, no que respeita ao domínio familiar, que, muitas vezes, a casa e a família são os lugares mais perigosos do mundo.
Os últimos casos de homicídio em contexto de violência domésticas poderão estar correlacionados com os efeitos da pandemia?
Admito que sim, no que ao confinamento e inerente ausência de relações extrafamiliares se refere. Maior proximidade, atingindo 24 horas por dia, durante cerca de dois meses, poderá ter gerado - diria que gerou - mais casos. O álcool pode ser um contribuinte, mas não creio que decisivo. Que restava a uma vítima em contexto familiar estando fechada em casa com o(a) parceiro(a) que a agride? Se é possível, sem confinamento, que agressores sinalizados por dispositivos existentes maltratem e matem cônjuges, pessoas com quem vivem e crianças, suas filhas, como impedir nesta fase?
Muitas crianças terão sofridos acréscimo de maus-tratos
As crianças, trancadas 24 horas por dia com pais saturados e ansiosos, também sofreram maus-tratos?
Inevitável. Muitas terão sofridos acréscimo de maus-tratos, outras conheceram-nos pela primeira vez. Para muitos, o confinamento demonstrou a insuficiência de tudo, desde o espaço físico habitacional à falta de condições, por exemplo por não terem equipamentos informáticos para as aulas ou um local onde pudessem estudar. O distanciamento familiar, que se reforçou por cansaço, por overdose de complicações conjugais, passou agora a ser mais evidente para os filhos.
Quanto às agressões físicas e sexuais, o tempo e os dados estatísticos se encarregarão de revelar as incidências que possam eventualmente ter havido. Mas acredito que muitos desses possíveis abusos ficarão também "confinados", sem se tornarem dados constantes das listas e estatísticas oficiais.
Os idosos, impedidos de frequentar o centro de dia e de conviver com amigos, também foram alvo de violência por parte de filhos desabituados a um permanente contacto? Qual pode ser a consequência desse fenómeno?
Maior sofrimento, quebras de vinculação mais acentuadas e, como nos outros segmentos etários, a possibilidade de deprimirem, de manifestarem somatizações. Ou seja, de agravarem as comorbilidades já existentes. Lembremo-nos que as formas de violência familiar representam um grave problema de saúde pública, atingindo severamente as vítimas. E os envolventes de uma relação violenta são, queira-se ou não, vítimas de violência.
Teme que as consequências económicas da pandemia - mais desemprego e salários menores - possa contribuir para o aumento de crimes como furto e roubo?
As crises não têm de desencadear aumento significativo desses tipo de criminalidade predatória. Mas as incidências ao nível mental poderão potenciar a prática de crimes, por exemplo contra as pessoas e precisamente em âmbito familiar, o que pode ser um problema. A maior proximidade em relações adoecidas, ou já rompidas, mas em que a coabitação se mantém, é suscetível de precipitar práticas criminais reiteradas. Quando aumentam a insatisfação e a desconfortabilidade psicossocial, a homeostasia altera-se e o eixo de poder do agressor reforça-se, desde logo, pelo medo incutido à(s) vítima(s).
Dever-se-á determinar a obrigatoriedade de as empresas privadas, a partir de certo número de trabalhadores afetos, terem ao serviço psicólogos
Teme que a saúde mental dos portugueses continue, no pós-crise, a ser desvalorizada?
A saúde mental tem sido o parente pobre da saúde em Portugal. Há muito que, na qualidade de presidente da PSIJUS e como professor de Psicologia, venho denunciando esta situação. Na crise, foi o que se sabe e o desinvestimento criou plúrimos problemas de saúde mental, que degeneram, com frequência, em problemas físicos. O stress, a ansiedade, por exemplo, também têm implicações físicas, por vezes graves.
Ora, o confinamento, as perdas de familiares (vítimas da covid-19), e de contacto com amigos(as) ou relações afetivas fora da ambiência conjugal ou dos familiares diretos, as quebras de rendimentos, o desemprego e o subemprego, a precariedade, se se reforçar, o temor das segundas e terceiras vagas e novos confinamentos, e mais crise e maior austeridade, tudo isto é idóneo ao comprometimento futuro da saúde mental dos portugueses.
Que medidas são essenciais para tratar a saúde mental dos portugueses?
Torna-se imperioso e urgente fazer o que não se faz há muito, ou nunca se fez: investir na prevenção primária, contratando psicólogos para as escolas, para as unidades de saúde, quer do Sistema Nacional de Saúde (SNS), quer das que têm fins lucrativos e do setor social, contratar psicólogos forenses (os que têm grau académico nesta área) para os tribunais e dispositivos de controlo social, nomeadamente as polícias.
Dever-se-á determinar, por via legal, a obrigatoriedade de as empresas privadas, a partir de certo número de trabalhadores afetos, número este que não pode ser elevado, terem ao serviço psicólogos que prestem apoio e acompanhamento aos funcionários. Deverá, outrossim, apostar-se nas redes de cuidados psiquiátricos e psicológicos ao nível do tratamento.
Há tanto para se fazer e este momento não pode ser desperdiçado. Vimos como o SNS foi e está a ser fundamental no combate à pandemia e tem de se vencer a resistência à contratação, em números adequados, de técnicos de saúde mental. Efetivamente, se aumentam os problemas, se aumentam os consumos de substâncias, lícitas e ilegais, se o jogo patológico medra, se as violências são o que sabemos, bem como os abusos de crianças e adolescentes, se estamos a atravessar uma pandemia, com todas as sequelas, com todos os estilhaços, que produzirão efeitos durante anos, como manter tudo como está? Há que ter coragem e investir. A saúde das pessoas, no seu conceito mais geral, agradecerá e poupar-se-á muito dinheiro em baixas médicas, em tribunais e prisões, em compensações por perdas e danos.
A saúde mental da população deverá, portanto, ser uma das prioridades do Governo...
Inevitavelmente. Rapidamente. A bem da saúde dos portugueses. Quando, ouvidos os técnicos, o Governo decidir avançar nesta rota e os ministros da Saúde, das Finanças e da Segurança Social fizerem contas, muito simples, constatarão que não é por aí que o défice se complica ou que Bruxelas levantará obstáculos sérios. Porque as contas demonstrarão retorno a prazo.