Crime aconteceu há 25 anos e quatro dos cinco homens condenados pelo homicídio de 13 pessoas estão em liberdade, casados e com filhos. José Queirós, o autor moral de um dos maiores crimes em Portugal, morreu a pedir esmola.
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O mandante daquele que foi um dos maiores crimes em Portugal morreu na miséria. Os três operacionais que atearam o fogo que matou 13 pessoas já saíram da cadeia, refizeram a sua vida e lutam para esquecer um delito que os irá assombrar para sempre. O intermediário do negócio criminoso seguiu rumo idêntico. Amarante esforça-se para ignorar o trágico episódio e só a pandemia forçou o encerramento do bar de alterne de má memória. O massacre do "Meia Culpa" aconteceu há 25 anos.
João Pinto tinha 15 anos quando a cidade amarantina acordou em "choque", com a notícia de que 13 clientes, funcionários e mulheres que trabalhavam como alternadeiras no "Meia Culpa" tinham morrido, num incêndio criminoso. Hoje, a velocidade com que o tempo se evaporou surpreende-o, mas mantém viva a memória desse período. "Foi um dos acontecimentos mais marcantes da cidade. Ninguém esperava aquilo", refere.
João trabalha numa loja de peças de automóveis existente no Edifício Cristal, cuja cave acolhia, em 1997, a mais recente atração da zona, a boate "Meia Culpa". O mesmo local continua, indiferente à tragédia ali ocorrida, a ostentar um reclame luminoso a assinalar a entrada de um bar de alterne, agora apelidado Bronze Clube. "Após o incêndio do "Meia Culpa", o espaço reabriu novamente como bar de alterne. Depois, passou a ser um bar normal e, nos últimos anos, voltou a funcionar ali um bar de alterne. Esteve aberto até ao início da pandemia, mas acho que agora está fechado", conta.
Negócio de sucesso
Nas palavras deste amarantino, o antigo "Meia Culpa", embora tenha mantido a atividade, "nunca mais funcionou" com a vitalidade alcançada naqueles tempos áureos. Tempos que deixaram saudade a António Barros. Aos 58 anos, este comerciante mantém-se a explorar o quiosque que existia em frente à outra boate de Amarante, o "Diamante Negro", propriedade de José Queirós, o homem que mandou incendiar o negócio rival. "Isto era um mundo. Após aquela tragédia, o "Diamante Negro", que chegou a ter 70 mulheres, ainda se manteve aberto uns três ou quatro anos, mas depois fechou. E com isso todo o negócio nesta rua foi abaixo", explica.
Paula, a esposa de António, recorda que o quiosque do casal chegava a estar aberto "até às três horas" para servir clientes que não paravam de chegar ao estabelecimento de diversão noturna. "A existência da boate era boa para todos, para nós, para os restaurantes, para as cabeleireiras", assume. Mas, dessa altura, nem o centro comercial onde brilhava o "Diamante Negro" resistiu. O espaço está a ser transformado num cineteatro municipal e as obras em curso são mais um contributo para o esquecimento coletivo que se apoderou da comunidade. "Foi um terror, mas hoje ninguém se lembra do que aconteceu", garante António Barros. "Ninguém tem receio de que algo parecido volte a suceder", complementa João Pinto.
Condenados em silêncio
Esquecer o dia 16 de abril de 1997 também é o maior desejo de César Fonseca, Ricardo Rocha, Aloísio Filipe Oliveira e Artur Jorge Santos. Todos participaram no planeamento e execução do ataque mortífero ao "Meia Culpa" e foram condenados a 25 anos de prisão, o máximo permitido por lei. Mesmo com a pena cumprida, aqueles que o JN conseguiu contactar recusaram prestar declarações sobre um episódio que os continua a perseguir, mas que já não afeta José Queirós.
O autor moral do massacre do "Meia Culpa" morreu em 2020, a sete dias de mais um aniversário do crime que encomendou.
Tiros e fogo criaram o pânico
"Os donos do "Meia Culpa" e do "Diamante Negro" eram excelentes pessoas e eram todos amigos. O [António] Almeida [sócio do "Meia Culpa"] costumava vir aqui [ao "Diamante Negro"] beber um copo. Acho que tudo aconteceu por uma questão de rivalidade".
A explicação é de António Barros, amigo de ambos, e vai ao encontro da tese que os juízes do Tribunal de Penafiel deram como provada. Segundo o acórdão, a abertura do "Meia Culpa", a 1 de março de 1996, trouxe uma concorrência que o "Diamante Negro" nunca teve em cerca de 20 anos de existência e motivou em José Queirós um desejo de vingança. O empresário planeou destruir a boate rival, de forma a que "jamais abrisse".
Queirós pediu a Artur Jorge Santos, cliente assíduo, que executasse o plano e este ofereceu a César Fonseca, um segurança da noite, 700 contos (3500 euros) para incendiar o "Meia Culpa". César chamou Aloísio Oliveira e ambos convenceram Ricardo Rocha, outro segurança, a participar.
Regados com gasolina
Com tudo acordado, César visitou o "Meia Culpa" para estudar o local e planear o ataque, que seria concretizado a 16 de abril de 1997. Nesse dia, os três operacionais reuniram-se, pela meia-noite, na casa de César, e rumaram a Amarante. Pararam o carro roubado junto ao Cristal Center faltavam poucos minutos para as 4 horas.
Já encapuzados e armados, os três esperaram a saída de uns clientes para invadirem a boate e, depois de dispararem contra as prateleiras do balcão, reuniram as 33 pessoas que ali estavam no meio do estabelecimento.
O barulho levou António Almeida, um dos sócios do "Meia Culpa", a sair do escritório para ver o que se passava, mas foi de imediato agredido e regado com gasolina. Em seguida, Ricardo derramou o restante combustível pelo balcão, chão, sofás e cortinados da boate e usou um isqueiro para atear o fogo.
Com as chamas a espalharem-se rapidamente, César e Aloísio abandonaram a boate. Ricardo foi atrás deles e durante a fuga ainda baleou um cliente.
Os três homens já estavam bem longe de Amarante - e na posse do dinheiro que Artur Jorge lhes entregara pouco antes -, quando os bombeiros retiraram 12 cadáveres do "Meia Culpa". Uma 13.ª vítima morreria dias mais tarde, em consequência dos graves ferimentos sofridos.
"Guerra" temida por controlo do território nunca aconteceu
Amarante era, na década de 90 do século passado, a capital do alterne no Tâmega e Sousa e o massacre do "Meia Culpa" fez temer o início de uma guerra pelo controlo do território, que o passar dos anos não confirmou.
As diversas casas de alterne, espalhadas sobretudo por Amarante, Lousada e Paços de Ferreira, mantiveram-se ativas, disputando clientes. Algumas, como o "Diamante Negro", não resistiram à concorrência. O "Meia Culpa", apesar das dificuldades para combater o estigma do massacre, foi-se mantendo aberto, embora com outros nomes.
Ao JN, fontes policiais confirmam que, nestes 25 anos, não se registaram episódios violentos entre os "senhores" do alterne do Tâmega e Sousa. As frequentes operações neste tipo de estabelecimentos visaram, essencialmente, o lenocínio e o auxílio à imigração ilegal, uma vez que muitas das mulheres que ali trabalham são estrangeiras, muitas em situação ilegal.
Sócio do "Meia Culpa" refugiou-se no estrangeiro
Às 4 horas, do dia 16 de abril de 1997, estavam 33 pessoas no "Meia Culpa". Cinco eram funcionários, 17 eram mulheres, alternadeiras, e dez eram clientes. Treze destes homens e mulheres entraram em pânico, não conseguiram fugir e morreram queimados.
António Almeida, o sócio da boate que foi regado com gasolina, teve melhor sorte. Encontrou a porta do estabelecimento e, embora ferido e com queimaduras, escapou com vida. Voltaria ao negócio da noite, mas seria novamente vítima de um esquema criminoso ao ser alvo de extorsão pelo "Gangue dos Ninjas". Com medo de represálias, refugiou-se em Itália, primeiro, e na Suíça, depois, onde criou empresas de construção civil.
Hoje, vive e trabalha no estrangeiro, mas regressa frequentemente a Amarante. E até ao Cristal Center, edifício onde funcionava o "Meia Culpa".