Redes de tráfico de seres humanos aproveitam as fragilidades do sistema português de concessão de asilo para introduzir vítimas na Europa. O esquema também é utilizado por criminosos em fuga e poderá estar a ser usado, igualmente, por elementos de organizações criminosas.
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Nenhuma entidade revela o número de requerentes de asilo que desapareceram do radar das autoridades, após instalados num centro de acolhimento. No entanto, segundo fontes contactadas pelo JN, a percentagem é de tal forma elevada que põe "em perigo a segurança nacional e europeia". No ano passado, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) registou 1991 pedidos de asilo e atribuiu proteção internacional a 34% dos casos. Do total de pedidos apresentados no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, 191 foram realizados por cidadãos indocumentados ou na posse de documentos de identificação falsos. De janeiro a abril deste ano, o número de casos foi de 57.
O processo é simples. Os cidadãos estrangeiros chegam à fronteira portuguesa - quase sempre através do Aeroporto Humberto Delgado - sem qualquer documento de identificação ou com passaportes falsos e, quando a sua entrada em território nacional é barrada pelos inspetores do SEF, requerem imediatamente asilo. Fazem-no porque têm conhecimento que a lei portuguesa impõe que os requerentes de asilo sejam automaticamente instalados num centro de acolhimento para refugiados (ou quando estes estão lotados em hostels alugados para o mesmo efeito) e aguardem, sem qualquer restrição de movimentos e com um visto especial válido para um mês, a decisão final sobre o pedido.
"Os requerentes de asilo passam uma ou duas noites nos centros de acolhimento, mas a maioria já não comparece no Gabinete de Asilo e Refugiados para dar as primeiras explicações formais para o pedido que fizeram, o que normalmente acontece no período de 48 horas. Abandona o centro de acolhimento sem indicar o seu paradeiro", explica, ao JN, uma fonte ligada ao processo. Outra acrescenta que "há redes que se aproveitam das fragilidades" do sistema de concessão de asilo vigente em Portugal para fazer circular vítimas de tráfico de seres humanos pelo Espaço Schengen e dá o exemplo de organizações que exploram mulheres de origem subsariana para fins sexuais.
"Estas mulheres chegam ao aeroporto sem documentos, pedem asilo e não dão mais nenhuma explicação. Dormem uma noite no centro de acolhimento, são contactadas por elementos da rede nas imediações do abrigo e combinam os pormenores da fuga. No dia seguinte, as mulheres são levadas, de carro, para França, onde são exploradas na prostituição", refere.
Silêncio impera
O presidente do Sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF, Acácio Pereira, reconhece o problema causado pelas atuais regras. Alega, no entanto, que "esse é um assunto que tem de ser analisado no âmbito de um futuro quadro legislativo resultante da reestruturação do SEF.
Já o próprio SEF lembra que, "de acordo com a Lei de Asilo, os requerentes de proteção internacional têm o dever de manter o SEF informado sobre a sua residência, devendo imediatamente comunicar a este serviço qualquer alteração de morada". E assegura que estes "estão, ainda, impedidos de abandonar o país durante a instrução do processo". Porém, omite quantos requerentes de asilo desapareceram sem qualquer justificação, ao longo dos últimos anos.
Só em 2021, o Conselho Português para os RKiev nega queda de Bakhmut e anuncia cerco parcial à cidade reclamada pela Rússia (jn.pt)efugiados2018 (CPR) garantiu "o acolhimento, quer nos seus centros de acolhimento, quer em alojamento externo, a 962 requerentes de proteção internacional". Número inferior aos 1779 do ano anterior e aos 1984 de 2019.
Os responsáveis do CPR asseguram ainda que, "na sequência de abandono das [suas] instalações por parte de um requerente, [dão] imediato conhecimento ao SEF", embora, realçam, "o abandono do alojamento poderá não significar necessariamente a desistência do pedido de proteção".
Mas, tal como o SEF, não revelam a quantidade de pessoas que abandonaram os centros de acolhimento sem indicar novo endereço. "Os requerentes podem circular em território nacional. [Mas] um dos deveres dos requerentes, decorrente da Lei do Asilo, é a obrigação de manter o SEF informado acerca do local da sua residência, devendo comunicar qualquer alteração de morada. Assim, informações referentes à localização dos referidos requerentes deverão ser solicitadas ao SEF", concluem.
Peritos internacionais alertam para lacunas do sistema português
Várias entidades já identificaram o problema de segurança relacionado com a requisição de asilo e os perigos estão plasmados em diferentes documentos. Incluindo na última edição do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI).
"Continuam a ser detetados indicadores da utilização do "abuso de trânsito aeroportuário" por cidadãos estrangeiros que pretendem migrar irregularmente de ou para Portugal. Este "abuso de trânsito" em aeroportos nacionais caracteriza-se ainda por pedidos de proteção internacional fraudulentos, que, após a entrada em território português, não têm seguimento por desinteresse ou por paradeiro desconhecido dos requerentes", destaca.
Publicado em março deste ano, o RASI descreve que "o "abuso de trânsito aeroportuário" sucedeu principalmente com passageiros de rotas provenientes de África (com destaque para Casablanca, Maputo ou Luanda), mas também da América Latina, a partir do segundo semestre do ano de 2022, com passageiros de nacionalidade indiana oriundos de Londres". "Importa, ainda, destacar o facto de a maioria dos passageiros requerentes de proteção internacional ou de asilo fazerem uso de documentação fraudulenta", sintetiza o documento.
Avisos desde 2020
O Grupo de Peritos sobre Tráfico de Seres Humanos (GRETA na sigla inglesa) do Conselho da Europa também já apelou a Portugal que implementasse mais procedimentos para identificar vítimas de tráfico de seres humanos entre os requerentes de proteção internacional. E alertou especialmente para os casos de crianças que chegam à fronteira desacompanhadas. "O GRETA considera que as autoridades portuguesas devem dar passos mais significativos para garantir que os casos de tráfico de seres humanos sejam investigados, alvo de uma acusação e de sanções proporcionais e dissuasoras", lê-se num relatório publicado em junho do ano passado.
Nesse documento, é referido que "o número de requerentes de asilo que chegam a Portugal tem aumentado ao longo dos anos" e, mesmo estando "em curso algumas alterações para adequar o sistema de asilo à dimensão deste fenómeno", "vários interlocutores informaram que existem lacunas na identificação das vítimas de tráfico de seres humanos no sistema de asilo". "Não existe um protocolo específico a seguir uma vez identificadas as potenciais vítimas de tráfico de seres humanos, exceto para comunicar o caso ao SEF e/ou ao Relator Nacional do Tráfico de Pessoas", avisa o GRETA, chamando à atenção para o "desconhecimento dos indicadores de tráfico entre as organizações que trabalham com migrantes indocumentados e administram centros de acolhimento para requerentes de asilo".
Os peritos recordam ainda que, já em 2020, o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas mostrava-se preocupado "com a falta de qualquer mecanismo adequado para a identificação de vítimas de tráfico de pessoas no processo de asilo, incluindo no que diz respeito às crianças". E frisam que, nessa ocasião, foi recomendado que Portugal "providenciasse formação adequada a juízes, procuradores, funcionários responsáveis pela aplicação da lei, funcionários dos serviços de imigração e pessoal que trabalha em todas as instalações de acolhimento".
Ex-ministro alterou regras
Até 2020, os requerentes de asilo aguardavam no Centro de Instalação Temporária (CIT) do Aeroporto de Lisboa a resposta ao pedido de proteção. Ficavam retidos naquele espaço, sem acesso ao exterior e sem contacto com pessoas que não estivessem ligadas ao SEF e aos serviços de apoio médico e jurídico. Só após um parecer positivo é que rumavam aos centros de acolhimento
Em 2018, o então ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, chegou a impor um inquérito ao CIT, na sequência de notícias que davam conta que uma criança de três anos, filha de uma requerente de asilo, estava há mês e meio ali retida .
Mas seria apenas em 2020, ano em que o ucraniano Ihor Homenyuk morreu, às mãos de três inspetores do SEF, que tudo mudou. Em março desse ano, Eduardo Cabrita, encerrou o CIT e quando, quatro meses depois, ordenou a sua reabertura alterou as regras. Os requerentes de asilo deixaram de ficar retidos no CIT e passaram a ser colocados imediatamente nos centros de acolhimento do CPR.
Questionado pelo JN, o Ministério da Administração Interna não respondeu se pretende manter esta regra. Também não respondeu a nenhuma das outras perguntas colocadas.
Casos
Rede de imigração ilegal
Uma rede de imigração ilegal angariava cidadãos em Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde, Senegal, Marrocos e Gana e montava todo o esquema para lhes permitir entrar na Europa. Falsificava passaportes diplomáticos de São Tomé e Príncipe com os dados biográficos dos imigrantes e até fornecia roupa europeia e bagagem luxuosa para que ninguém suspeitasse da sua proveniência nos controlos alfandegários. No início de abril, o SEF identificou um grupo a tentar entrar em Portugal através do aeroporto de Lisboa e reteve-o. Porém, três dos quatro imigrantes detidos, nomeadamente um casal guineense e um cabo-verdiano, requereram asilo e foram transferidos para instalações do CPR. No dia seguinte, abandonaram os abrigos sem deixar rasto e as autoridades não sabem se continuam em Portugal ou rumaram a outro país europeu.
Procurado por violação
Quando, no final do ano passado, foi abordado pelos inspetores do SEF, à saída de um voo que o trouxe até Lisboa, o cidadão da Guiné-Conacri foi sincero e logo confessou que estava a ser procurado pela Polícia do país de origem, que suspeitava que teria violado uma menina. Logo de seguida, também requereu asilo e, no cumprimento da lei, foi instalado num centro de acolhimento. Ali, recebeu assistência médica, foi vacinado contra a covid-19 e dormiu uma noite antes de abandonar o local sem indicar novo paradeiro.
Pedidos de asilo registados pelo SEF
2022 - 1.991 (concedidos 694 ). Principais nacionalidades: Afeganistão (287), Índia (229), Gâmbia (167), Paquistão (122), Marrocos (108)
2021 - 1.537 (concedidos 306). Principais nacionalidades: Afeganistão (665), Marrocos (118), Índia (82), Gâmbia (68) e Guiné (58)
2020 - 1.002 (concedidos 94). Principais nacionalidades: Gâmbia (157), Angola (117), Guiné-Bissau (92), Marrocos (85) e Guiné (79)
2019 - 1.848 (concedidos 296). Principais nacionalidades: Angola (308), Gâmbia (173), Guiné-Bissau (160), Guiné (128) e Venezuela (96).
Pormenores
Lei do Asilo
Em Portugal, é garantido o direito de asilo aos estrangeiros perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência de atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana. Pode, igualmente, ser atribuído o estatuto de proteção subsidiária a quem seja impedido ou se sinta impossibilitado de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correr o risco de sofrer ofensa grave.
Guerras e perseguições
Conflitos armados, violações sistemáticas dos direitos humanos nos países de origem ou perseguições motivadas por razões religiosas, políticas, étnicas, relativas à nacionalidade ou pertença a determinado grupo social são, segundo o CPR, os principais motivos apresentados para justificar o pedido de asilo.
Centros abertos
Todos os centros do CPR funcionam em regime aberto, porque, lembra a instituição, nos termos da Lei do Asilo "os requerentes de proteção internacional não podem ser mantidos em regime de detenção pelo facto de terem requerido proteção". Assim, sublinha o CPR, a detenção de requerentes de proteção internacional trata-se de uma situação excecional, encontrando-se especificamente previsto o enquadramento respetivo".
SEF decide
O SEF é a entidade responsável pela decisão sobre aceitação de pedidos de proteção internacional, bem como pela instrução dos processos de concessão deste tipo de proteção e determinação do Estado responsável pela análise dos pedidos e execução da transferência para outro Estado Membro.
Dever de comparência
O SEF esclarece que a instalação dos requerentes de proteção internacional é, desde 2020, solicitada ao CPR, "sendo o cidadão estrangeiro notificado do local onde vai ficar instalado, em regime aberto, com o dever de comparência no Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF, para efeitos de audição quanto ao mérito do pedido de proteção internacional".