Ivo Rosa decide amanhã Operação Marquês, "em resultado do que sabe ser e, mais do que isso, do que consegue justificar".
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Mais de dois anos depois de dar início, a 28 de janeiro de 2019, às diligências instrutórias da Operação Marquês, o juiz Ivo Rosa, do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), revela amanhã, no Campus de Justiça de Lisboa, se manda (ou não) para julgamento, e em que termos, o ex-primeiro-ministro José Sócrates - acusado de 31 crimes de corrupção passiva, branqueamento, falsificação e fraude fiscal - e outros 27 arguidos, incluindo nove empresas.
É a primeira vez - desde que em setembro de 2018 assumiu, por determinação de sorteio eletrónico, a instrução do processo - que o madeirense, com 54 anos de idade e quase três décadas de judicatura, se vai pronunciar publicamente sobre os crimes imputados pelo Ministério Público (MP) aos arguidos. A expectativa é grande.
Há dois anos e meio, o resultado do sorteio eletrónico foi saudado pelos advogados de alguns dos principais arguidos. Um dos mandatários de Sócrates - João Araújo, entretanto falecido - chegou a declarar que o processo tinha "finalmente" um "juiz legal e não um juiz escolhido pelo Ministério Público". Carlos Alexandre, que acompanhara o inquérito titulado pelo procurador Rosário Teixeira, do Departamento Central de Ação e Investigação Penal do MP, era o alvo da crítica. E a única alternativa a Ivo Rosa, pois não há mais magistrados colocados no TCIC. Alexandre, que tem 59 anos e é juiz há 35, tivera a ousadia, em 2014, de decretar a prisão preventiva do ex-primeiro-ministro. Um facto inédito na história da democracia portuguesa, que se prolongou por 288 dias.
Esta sexta-feira, é com todos os arguidos em liberdade que Ivo Rosa profere, a partir das 14.30 horas, decisão. Com outra novidade assegurada: a transmissão da diligência em direto, nas televisões e noutras plataformas, como o sítio eletrónico do JN.
Em julho, ao encerrar o debate instrutório, Ivo Rosa lembrou, sem se pronunciar sobre os factos em si, que há sempre três desfechos possíveis: "uma decisão integral de não pronúncia, fundada em questões processuais ou ausência de indícios; uma decisão integral de pronúncia; e uma decisão parcial de pronúncia e outra de não pronúncia". Dada a complexidade do processo, o mais expectável é que a solução adotada seja a última. E se assim for - ou mesmo se caírem todos os crimes -, o despacho instrutório, que terá milhares de páginas, será certamente objeto de recursos para os tribunais superiores.
as regras segundo Ivo rosa
Apontado como particularmente exigente na análise da prova indireta - baseada em deduções e bastante comum em casos de corrupção -, Ivo Rosa recordou, em julho, que a apreciação daqueles indícios tem "regras a cumprir". "Ao juiz é exigido que demonstre todo o percurso intelectual e lógico que o levou, a partir de um facto conhecido e demonstrado por prova direta [pericial ou documental, por exemplo], a um facto adquirido", sustentou.
Mais: "O juiz, mesmo em sede indiciária, nunca poderá aceitar o risco de decidir em função do que parecer ser ou do que pensa ser, mas sim sempre em resultado do que sabe ser e, mais do que isso, do que consegue justificar", avisou ainda Ivo Rosa, acrescentando que, "ao contrário do que é exigido para a dedução de uma acusação", uma decisão instrutória tem de ser "fundamentada".
No total, o MP imputou aos arguidos 189 crimes. De corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal, entre outros. A generalidade dos acusados diz-se inocente, mas é sobretudo em questões jurídicas - como a suposta ilegalidade do processo administrativo que deu origem ao inquérito-crime em 2013 - que aposta para não ir a julgamento. Na sexta-feira, saberão se a estratégia deu, por agora, resultado.
Da PT ao TGV, arguidos negam teia de subornos
Megaprocesso junta vários casos que têm como figura central o antigo primeiro-ministro.
Durante um ano e meio, 11 arguidos e 44 testemunhas passaram pelo Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa, para serem inquiridos, à porta fechada, pelo juiz Ivo Rosa, sobre temas tão diversos como o real proprietário de milhões que circularam entre contas bancárias em Portugal e no estrangeiro; a compra de casas em Paris (França) e no Alentejo; a obra do troço Poceirão-Caia do TGV; o empreendimento Vale do Lobo, no Algarve; e a estratégia empresarial da Portugal Telecom (PT).
O ex-primeiro-ministro José Sócrates (2005-2011), 63 anos, é um dos elos de ligação entre os dossiês da Operação Marquês, mas não o único: entre os seus alegados corruptores está Ricardo Salgado, 76 anos, antigo presidente do Banco Espírito Santo (BES), e igualmente suspeito de subornar Zeinal Bava, de 55 anos, e Henrique Granadeiro, de 77, ex-administradores da PT.
Ainda assim, é Carlos Santos Silva, de 62 anos e amigo de longa data de Sócrates, o arguido que responde por mais crimes: 33. Segundo o Ministério Público (MP), terá sido nas contas do empresário que o antigo governante terá acumulado 23 milhões de euros, para assim esconder que era o real proprietário da fortuna, alegadamente obtida de forma ilícita. Os atos terão sido praticados entre 2006 e 20150.
VIDA DE LUXO
"Empréstimos", diz Sócrates
De acordo com a acusação, entre as formas encontradas por Santos Silva e Sócrates para que este pudesse gastar o dinheiro está a sua entrega em notas ao ex-primeiro-ministro e a pessoas da sua esfera pessoal. Em tribunal, os arguidos garantiram, porém, que em causa estão empréstimos que o antigo governante até já terá começado a pagar: de um total de 510 mil euros teria, até novembro de 2019, devolvido 250 mil euros. A compra por Santos Silva de um apartamento de 2,8 milhões de euros em Paris e a aquisição pela ex-mulher de Sócrates, Sofia Fava, de uma herdade em Montemor-o-Novo - com recurso a dinheiro do amigo do ex-marido - terão sido outros dos esquemas usados. Santos Silva contrapôs que o apartamento era mesmo seu, enquanto Fava, de 51 anos, retorquiu que se tratou apenas de um empréstimo.
MILHÕES
A quem pertence a fortuna?
A questão de quem é o real proprietário do dinheiro é, de resto, central no processo. Isto porque, apesar de o montante ter sido inicialmente acumulado no estrangeiro com recurso a circuitos financeiros complexos, foi, em 2010, repatriado por Santos Silva para Portugal ao abrigo do Regime Excecional de Regularização Tributária (RERT) então em vigor, de forma aparentemente legal. Igualmente relevante é, caso essa fortuna pertença, como alega o MP, a Sócrates, saber como foi obtida. O ex-primeiro-ministro tem negado ser o proprietário daquela quantia, mas, segundo a acusação, os 23 milhões de euros serão apenas uma parte dos 34 milhões que terá recebido em subornos de três origens distintas: Joaquim Barroca, 59 anos e então administrador do Grupo Lena; Rui Horta e Costa, 60 anos, e José Diogo Gaspar Ferreira, 59, ex-administradores de Vale do Lobo; e Salgado.
COMPENSAÇÃO
Concurso do TGV sob suspeita
Entre os alegados benefícios que terão levado Barroca - que nega a prática de qualquer crime - a fazer chegar 5,8 milhões de euros à esfera pessoal de Sócrates, está o concurso para a construção do troço Poceirão-Caia do TGV. A obra, que nunca chegou a sair do papel, foi adjudicada a um consórcio que incluía o Lena e que, após o chumbo do projeto pelo Tribunal de Contas, ganhou o direito a receber 150 milhões de euros. A integração no contrato dessa compensação financeiria foi uma das questões mais abordadas na instrução. Interrogado por Ivo Rosa, Sócrates rejeitou, ao contrário do que alega o MP, ter tido qualquer interferência no concurso do TGV. Não foi o único dossiê em que optou por esta linha de defesa.
VALE DO LOBO
Processo chegou ao banco público
Segundo a acusação, Sócrates terá recebido um milhão de euros dos administradores do empreendimento Vale do Lobo por ter nomeado, em 2005, Armando Vara para a Administração da Caixa Geral de Depósitos. Para o MP, o ex-gestor, de 67 anos, terá favorecido aquele resort na concessão de um crédito considerado ruinoso para o banco público. Em contrapartida, terá também recebido um milhão de euros. Sócrates alega que não participou na nomeação - posição corroborada na instrução por testemunhas, incluindo o ministro das Finanças à data, Fernando Teixeira dos Santos. Já Vara assegurou que a quantia, recebida numa conta na Suíça, é o pagamento por trabalhos que fez como consultor e pelo qual está disposto a pagar o imposto devido.
CASO PT
Salgado nega suborno milionário
A Suíça é, de resto, um dos principais pontos de passagem dos mais de 65 milhões de euros que, acredita o MP, Salgado terá usado para subornar Sócrates, Bava e Granadeiro, de modo a não perder a influência do BES sobre a PT, então de capital parcialmente público. A rejeição da oferta pública de aquisição lançada pela Sonae sobre a PT, os contornos da estratégia da companhia no Brasil e o investimento de centenas de milhões de euros em papel comercial do Grupo Espírito Santo (GES) terão sido alguns dos atos que beneficiaram o BES em detrimento da PT. Quando foi ouvido, Salgado reiterou que nunca corrompeu ninguém.