Eurico Reis pagou multa por dizer que extravio de processo da morte do seu pai foi intencional. Vai jubilar-se "para combater males do sistema".
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O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) confirmou, ontem, uma multa aplicada pelo Conselho Superior de Magistratura (CSM) ao juiz Eurico Reis. Os juízes europeus consideraram que o dever de discrição de um agente da Justiça se sobrepõe ao direito à liberdade de expressão. Portanto, o ex-presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida não devia ter referido, numa entrevista, que o desaparecimento de um processo do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) resultou de um "significativo conluio interno" para proteger a CP (Comboios de Portugal) e a Refer (Rede Ferroviária Nacional). Devido a esta sentença, Eurico Reis diz que se vai jubilar, para poder lutar pelo sistema judicial "com outros meios".
"Não estou surpreendido. Não é fácil ser uma ovelha tresmalhada em Portugal, nem no resto do Mundo", afirma. Ao JN, o juiz garante que esperava este desfecho, porque "há 30 anos" que faz "críticas ao sistema judicial e judiciário". E promete continuar. "Nos dias seguintes a ter recebido a notificação a anunciar que iria ser proferida a sentença, entreguei os papéis para ser jubilado. O combate pelos meus ideais será feito noutro âmbito, porque não quero que as minhas netas vivam o que eu vivi até ao 25 de abril de 1974", revela.
Processo desaparece
O caso é de abril de 1994, dia em que pai do juiz foi colhido por um comboio, na estação de Queluz-Belas, e morreu. Eurico Reis e a família exigiram responsabilidades à CP e à Refer e o Tribunal de Sintra condenou-as ao pagamento de uma indemnização de 155 mil euros.
Seguiu-se um recurso e um episódio insólito: as caixas com os seis volumes de documentos e dez cassetes com as gravações das audiências de julgamento desapareceram do TRL. E assim permaneceram durante mais de ano e meio, até que, sem que ninguém descobrisse como, ressurgiram no mesmo local.
Numa entrevista ao Jornal I, em 2012, Eurico Reis disse que o desaparecimento do processo era "inadmissível" e que só aconteceu por ser uma "persona non grata" no meio judicial. Sugeriu ainda que houve intenção de proteger a CP e a Refer. "O sistema de Justiça já não é um mero embaraço, mas um obstáculo ao desenvolvimento do país", defendeu.
"Caos social"
As críticas valeram-lhe uma condenação do CSM, mesmo contra a proposta de arquivamento do instrutor do processo disciplinar. "Tais declarações são capazes de criar o caos social, pois foram feitas por um juiz do mesmo tribunal de onde o processo desapareceu", justificou-se então.
O Supremo Tribunal de Justiça confirmou a multa de 1785 euros. "Não era razoável concluir e partilhar com os meios de comunicação social a ideia de que a interferência humana estava por detrás do desaparecimento do processo, e, menos ainda, que se tratava de um incidente que poderia repetir-se enquanto interesses poderosos dentro das partes no processo o desejassem", sustentaram os juízes conselheiros.
Ao recurso apresentado por Eurico Reis, o TEDH respondeu ontem. "Não deu a entrevista na perspetiva de um cidadão, mas comentou as falhas mais amplas do sistema judicial, e especialmente do TRL, da sua perspetiva como membro desse tribunal. Os seus comentários podem ser corretamente considerados como pondo em causa a autoridade do poder judicial", lê-se no acórdão.
Processo concluído ao fim de 27 anos
Abril de 1994
O pai de Eurico Reis foi colhido por um comboio e morreu. A família avança para tribunal para exigir responsabilidades à CP e à Refer.
Fevereiro de 2011
O Tribunal de Sintra condena CP e Refer ao pagamento de indemnização de 155 mil euros.
Janeiro de 2012
Na sequência do recurso da CP e da Refer, caixas com seis volumes do processo desaparecem do TRL.
Maio de 2012
A investigação criminal do DIAP de Lisboa não apurou como o processo se extraviou. Concluiu que não havia protocolo para regular transporte de processos. O TRL introduz novas regras para prevenir futuros extravios.
Junho de 2012
Eurico Reis diz, em entrevista, que o desaparecimento do processo não foi acidental e que houve conluio.
Abril de 2013
Processo reaparece no mesmo local e da mesma forma que desapareceu.
Julho de 2013
O Plenário do CSM condena juiz a multa de 1785 euros, por violar o dever de correção.
Abril de 2014
O Supremo Tribunal de Justiça não dá provimento ao recurso de Eurico Reis.
Fevereiro de 2022
TEDH também não dá razão ao juiz português.
Acidente
Negligência
O pai do juiz foi colhido quando atravessava a passagem de nível para peões. A família alegou que houve negligência da CP e da Refer.
Supremo anula
O Tribunal de Sintra e o TRL condenaram as duas empresas ao pagamento de uma indemnização de 155 mil euros. Porém, o Supremo Tribunal de Justiça reverteu a condenação e a família nunca foi compensada.
Estado crítica
O Estado português defendeu, na contestação à queixa no TEDH, que as declarações do juiz causaram danos ao bom nome das pessoas que trabalhavam no TRL.