Para lá de todos os dramas pessoais que os levaram a partir e que hão de carregar pela vida fora, chegam exaustos das penosas travessias do deserto líbio, dos maus-tratos das milícias, dos abusos de agiotas, e ainda mais amedrontados pela angustiante e frequentemente funesta passagem do Mediterrâneo.
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São todos jovens, muito jovens, mas já com o rosto cunhado por tantas experiências de violência. Zayed, Ali e Abdulaye são só três nomes das histórias de sofrimento que chegaram aos Missionários da Consolata, em Águas Santas.
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Zayed Bin Hanif tem 19 anos. Em 2018, escapou de Sialkot, uma cidade industrial do Punjab. Deixou tudo, incluindo o cenário de pobreza e de violência. "Deixei os meus amigos e a minha família no Paquistão e não posso sentir-me bem por isso, mas o que podia fazer por mim? A minha família no Paquistão também não era boa boa para mim", disse o jovem paquistanês à reportagem do JN.
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Refugiado desde os 16 anos, desde que acabou "a nona classe", Zayed calcorreou o Paquistão de uma ponta à outra, percorreu o Irão e a Turquia e viu-se, finalmente, na Grécia. À entrada na Europa, sofreu: "Trabalhei numa fábrica, mas o patrão não me deixava ir à escola". Voltou a partir e acabou num campo de migrantes, onde, finalmente, foi detetado pelo Alto Comissariado da ONU para os Refugiados. A porta de Portugal escancarou-se.
Estudar e trabalhar
"Tenho família em Portugal [ndr: um tio, estabelecido nas Caldas da Rainha] e adorei vir para cá. Na Grécia não me concederam muitas facilidades. Aqui, em Portugal, estou muito melhor. Posso estudar e trabalhar", afirma Zayed, um dos quatro refugiados na Fundação José Allamano que trabalham/estagiam na IKEA Matosinhos. "Isso é bom para o meu futuro. Portugal é um país lindo. Adoro as pessoas. Têm-me muito respeito", diz o jovem paquistanês, a soltar "bons dias", "boas tardes" e "como está?" no idioma de Camões. "Tenho de aprender a falar português", afirma.
Tal como Zayed, também Ali Barry chegou a Águas Santas em dezembro do ano passado. Um destino que o cidadão da Serra Leoa, de 22 anos, nunca imaginou ser o dele. "O que conhecia de Portugal? Pouco. Conhecia o Cristiano Ronaldo e o F.C. Porto. Também o Braga. E conhecia Lisboa. Quando soube que vinha para cá, pesquisei na Internet, para saber mais", conta Ali.
Para o jovem da Serra Leoa, o pior já passou. Foi o pesadelo da travessia do deserto da Líbia e a prisão às mãos das milícias, em condições desumanas. "Passei três anos na Líbia. Estive lá preso durante nove meses. Finalmente, pude sair e fugir para Itália. Saí de noite, às 10 horas, viajámos de barco até às 11 da manhã, até que o motor partiu. Como não tinha boa Internet, não pude ligar a ninguém. Até que chegou o resgate do Ocean Viking. Mas ainda estive duas horas na água", recorda Ali, que continua "em debate com as memórias".
"É muito difícil recordar. O mais importante, agora, é que estou feliz em Portugal. Sou bem tratado, está tudo bem comigo, não tenho problemas com ninguém. E tenho de agradecer ao Governo", felicita-se Ali. Sobre um eventual regresso à terra natal é que nem pensar: "Não vai ser possível regressar ao meu país. Tenho muitos problemas com a família. Perdi o meu pai quando era muito novo, só tenho um irmão e uma irmã, que vivem com a minha mãe. Por vezes, falamos ao telefone. Tenho muitas saudades da minha mãe, mas não vai ser possível regressar".
Apátrida no próprio país
Da vizinha Libéria chegou uma vítima dos conflitos étnicos e tribais que também minam a paz em África. Abdulaye Dukuly, de 20 anos, é da minoria Mandigo (originária da Serra Leoa e da Guiné) e por isso sabe como ninguém o que é a discriminação.
"Não era livre. Era considerado um não-liberiano, um cidadão sem direitos no meu próprio país. Mesmo com documentos liberianos, não me consideravam como tal, por causa do meu nome e da minha origem. Nem a Polícia reconhecia o meu cartão de identidade", afirma Abdulaye.
O jovem natural de Monróvia deixou o país de George Weah em 2017. Viajou pela Argélia e pela Líbia, confrontou mais discriminação e também desafiou o Mediterrâneo numa lancha. Em Maio de 2019, chegou a Itália. Em março, há menos de dois meses, entrou pela primeira vez no mundo novo que o acolhe em Águas Santas. As sensações são as melhores: "Fui muito bem acolhido, sou muito bem tratado. Agora, tudo depende de mim".