Foi um momento bonito, num dia normal. De trabalho. Mas reinava o silêncio. Absoluto. Pela janela aberta, apenas se esgueirava o chilrear dos pássaros, entremeado pelo som do vento na folhagem. Nada de motores.
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Apenas uma perturbação. Ou melhor, sete. De uma cidade parada, sem vida fora de portas, ergueram-se sete gritos saídos como que de nenhures. Golos sentidos, longe da crise que nos entra casa adentro. Porquê?
Porque o futebol é um fenómeno de massas, é a maior representação de Portugal para lá das fronteiras e o país não consegue disseminar essa representação por outros lados. Dizem os sociólogos. E as bandeiras que, ontem, se multiplicaram pelas fachadas, como se tivesse sido preciso humilhar a Coreia do Norte para haver Portugal.
Hoje, "o desporto é um dos tabuleiros onde as negociações identitárias mais tomam forma" e "dizer estou-me nas tintas para a selecção nacional seria como dizer estou-me nas tintas para o país", explica João Sedas Nunes, sociólogo que dedicou o doutoramento ao fenómeno futebolístico. E Portugal sorriu. Porque foram sete secos. "Ganhámos". Fosse o contrário e seriam eles, os que lá estão na longínqua África do Sul, quem perdeu. Não nós.
"O povo dá à selecção a prerrogativa de ser a imagem do país", acrescenta Manuel Sérgio, teórico do futebol. E, por instantes, maiores ou menores, esquece-se dos "problemas gravíssimos" do dia-a-dia. "Antigamente, dizia-se que a religião era o ópio do povo. No nosso tempo, pode dizer-se que o futebol está a sê-lo. É a grande manifestação da alma colectiva de um povo".
E por que não o é a cultura, por exemplo? Porque o futebol "é uma competição, em que se vence alguém, enquanto a Mariza é bem sucedida sem ganhar nada a ninguém. Se calhar as sociedades precisam de guerras, de confrontos de identidade, de batalhas fingidas", arrisca João Nuno Coelho, outro sociólogo atento ao desporto. João Seda Nunes alinha. "É através do desporto que as nações se digladiam, se confrontam", num papel que antes cabia às instituições políticas. E guerreiras, diz Manuel Sérgio. "O herói clássico está presente em cada um dos jogadores", em partidas que são "batalhas estilizadas".
Mas só por breves instantes. A pressão para a atenção à selecção produz "alegrias breves", a compensação necessária para regressar à vida. Porque "um campeão não resulta em qualquer transformação económico ou político", conclui João Nuno Coelho.