Chegar a meio da tarde a Olivença causou um certo espanto. Pairava a tranquilidade, as ruas desertas, não se via povo a deambular por aquela espécie de vila alentejana, um sossego total, persianas corridas. Compreendia-se: o termómetro estava perto dos 40 graus e a população devia estar a fazer a "siesta". Até o comércio estava quase todo fechado. A loja "El Português - Material Eléctrico" nem parecia ter electricidade. A labutar, só lojas de chineses e um estabelecimento de regalos chamado Saudade.
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Todavia, foi na Avenida Ramón y Cajal que se vislumbrou alguma vibração, numa esplanada, espécie de auditório, junto a um pub chamado "Aqui Mismo". À porta, no passeio, pipas de vinho embrulhadas na bandeira espanhola - no topo, dois enormes baldes com pistachos e amendoins salgados para o povo se servir à grande e à espanhola.
Os nativos ficaram todos contentes por receber portugueses. Fomos recebidos de braços abertos, e num ápice ofereceram a primeira rodada a estes lusitanos que armados em espertos fizeram questão de acompanhar o jogo numa localidade onde existe a secular questão sobre a soberania de um território que há mais de dois séculos é motivo de discórdia - ainda que mansa - entre os dois países.
"Hombre, isso foi muito atrás", reagiu, sem cerimónias, Angel Rodriguez, de 27 anos. "A opinião aqui", continuou, "é que todos somos espanhóis e ninguém sequer questiona isso". A seu lado, amigos acenavam a cabeça em movimentos afirmativos. Cristian Gonzalez fez questão de sublinhar que "defendemos o nosso passado português a nível cultural mas não a nível político", e teceu elogios à lusa cultura que fez com que Olivença "se tornasse naquilo que é hoje". Citou casos de idosos de "70 anos para arriba" que entre si falam português mesmo "en la calle".
"Mas a juventude é espanhola", contrapôs de imediato Juan Francisco, adepto do Real Madrid "hasta la medula, hasta la muerte" e que disse nutrir enorme admiração pelo nosso país, sobretudo pelas piscinas de Elvas, onde amiúde vai com a cachopa.
Mas sem demoras, as televisões mostraram as selecções a subir ao relvado e todos perderam a pachorra para falar sobre polémicas de História ibérica.
O hino de Espanha não tem letra; como tal, a espanholada da esplanada - umas largas dezenas - ergueu-se e entoou a melodia. Já quando chegou o nosso hino houve um ou outro engraçado que urrou uh-uh-uh, qual macaco, perante muitos mais que nos olhavam envergonhados pela atitude dos seus conterrâneos. Depois, o esférico rolou e o comentador televisivo disparou um castelhano serpenteante onde só se percebia pelota (bola) para aqui e pelota para acolá. Não foi preciso muito tempo para percebermos que estávamos a levar um monumental banho de pelota dos hispânicos. E o entusiasmo da espanholada agigantava-se no cuspir sucessivo de cascas de pistachos a um ritmo alucinante.
Talvez por misericórdia, não sabemos, ou por mera generosidade, os espanhóis teimavam em oferecer-nos bebidas. Se calhar, para a anestesia do inevitável: David Villa concretizou golo, qual lança enfiada na Lusitânia, e a rua explodiu num berro afinado a cantarolar "Villa, Villa, Villa, Villa, Mara-Villa!". Fez um gajo quase trezentos quilómetros para território hispânico para levar com isto: a espanholada em júbilo, à nossa volta, a mesa quase a cair, e nós ali com a cabeça do fado habitual.
Para piorar o cenário, na televisão, o Queiroz gesticulava enervado, o Ronaldo mandava-se para a piscina e o Ricardo Costa era expulso - e foi aí mesmo que a espanholada, já muito enfrascada, desatou a cantar "esse es português, hijo de puta és!". E um tipo ali, alapado, sem saber o que fazer ou dizer para além de desejar que Brites de Almeida entrasse em campo - ou na esplanada... - para desatar à paulada a seis ou sete castelhanos.
O jogo acabou tal como começou - com domínio indiscutível da Espanha - e nuestros hermanos cercaram-nos para abraços, salamaleques, ofertas de cervejas e o paleio de que somos um país e um povo porreiro e tal.