É preciso entender que a independência do Brasil diz respeito a um lado bastante incompleto do processo histórico que envolve os povos que vivem nesse território gigante.
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De algum modo, várias são as nações originárias que perduram ali independendo dos padrões brancos e europeizados que enformam a maioria. Várias são as nações que não se interessam pela Língua nem pela Cultura dominante, procurando tão-só sobreviver na sua genuína condição de outra gente, livre em sua autodeterminação.
Se quisermos, os 200 anos dizem respeito a uma multidão de brasileiros, mas não a todas as pessoas legitimamente vivendo no território a que chamamos Brasil. Para algumas pessoas, Portugal é um ocupador ao qual escaparam, ao qual resistiram, até 1822, bem como seguem resistindo ao poder que, pela mesma inspiração, os segue castrando e matando. Importa-me muito esta questão quando parece que o Governo brasileiro se prepara para uma evocação saudosista onde o colonizador volta a estar no centro do suspiro, recebendo um pedaço cadáver de um rei como se de um efectivo chefe de Estado se tratasse.
Se isto daria uma belíssima tragédia de Shakespeare, também é o quanto significa de mórbida vassalagem ao passado europeu, reiterando complexos que deviam ser eliminados em favor do esplendor do genuíno tropicalismo que o Brasil define e representa. Duzentos anos de independência deviam ser todos acerca de como as pessoas do Brasil não podiam ser criadas em outro lugar e têm tudo de maravilha para dar ao Mundo.
Com seu samba e seu sincretismo, com sua solaridade na linguagem e no gesto, com séculos livres onde Machado de Assis e Ignácio de Loyola Brandão, Villa-Lobos e Caetano Veloso, Portinari e Efrain Almeida, Ruth de Souza e Alice Wegmann já provaram até à náusea que vale a pena. Vale muito a pena. Que azar que tão belo aniversário caia na mão de um Governo de inspiração fascista, excludente, um Governo que reclama uma cidadania plena apenas para homens brancos e heteronormativados.
Que azar que se levante tão belo aniversário para uma festa humilhante onde o elogio das elites brancas que sempre dominaram será reiterado. Se querem mesmo celebrar o Brasil, um Brasil real e que contribui com o que nos falta a todos, então há que fazer apelo aos povos originários, aos negros, a todos quantos ali tiveram encontro e hoje se apresentam como uma receita de inesgotável valor humano, de admirável resistência. Esse é o Brasil que tem tudo para ensinar ao Mundo. E esse é que verdadeiramente representa independência. O outro correrá sempre o risco de ser sobretudo uma saudade da Europa. Por definição, não será independente.
o autor escreve segundo a antiga ortografia
* Professor e escritor