Apesar de subsistir a ideia de que Portugal e Brasil são países amigos, imigrantes em terras lusas queixam-se de preconceito e xenofobia.
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Nem um passado marcado por relações bicentenárias ou a asserção de que Portugal e Brasil são "países irmãos" têm facilitado a integração dos imigrantes por terras lusas, em pleno século XXI. Os dados da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), divulgados no início de agosto, mostram que, das mais de 400 queixas recebidas no ano passado, 26,7% dizem respeito à alegada discriminação de brasileiros, evidenciando que, apesar de Portugal continuar a ser um país de eleição, a adaptação ainda é marcada pela desconfiança.
O facto de a comunidade brasileira ser a que mais apresentou relatos de discriminação perante a CICDR no ano de 2021 pode estar diretamente relacionado com o aumento da comunidade brasileira em Portugal, indica a socióloga Rita Ribeiro, observando que "há menor tolerância para situações de discriminação".
Mulheres sofrem mais
Por outro lado, a investigadora explica que "os discursos xenófobos que se alimentam do medo do que é estrangeiro" também dificultam o processo de adaptação à sociedade portuguesa que, apesar de demonstrar "recetividade", ainda apresenta alguma "desconfiança" que muitas vezes resulta em xenofobia.
São as mulheres, de acordo com o relatório da CICDR, que apresentam mais queixas relacionadas com discriminação, o que é corroborado pela vice-presidente da Casa do Brasil, Ana Paula Costa, ao admitir que as brasileiras são as principais vítimas de preconceito no seio da comunidade. "A comunidade tem sofrido devido a uma série de estereótipos, como a ideia de que as mulheres brasileiras são mais disponíveis sexualmente. Este estereótipo mantém-se e é utilizado como fator de discriminação em espaços públicos", elucida a responsável pela associação de imigrantes, com sede em Lisboa.
Maria (nome fictício) sentiu na pele a dor de ser marginalizada socialmente quando atravessou o Atlântico. Após um divórcio conturbado, rumou a Portugal em 2015, onde voltou a casar, mas foi no seio da nova família que teve o primeiro contacto com o preconceito. "Uma parente do meu marido, ao saber que eu tinha morado numa região de Portugal onde, segundo alguns relatos, existem mulheres de nacionalidade brasileira que trabalham como profissionais do sexo, comentou que, provavelmente, era nessa área que eu trabalhava", conta, lembrando que ouviu inúmeras vezes que as pessoas do Brasil "não eram confiáveis".
Em 2020, quando chegou a Portugal e começou a trabalhar na área da restauração, no Porto, também Leticia, agora com 25 anos, estava longe de imaginar que iria ser alvo de hostilidades com base na nacionalidade. "Um dia estava a atender um casal português de meia-idade e, ao dar-lhes as boas-vindas, ouvi a frase "olha, é o nosso dia de sorte, é a primeira vez que não fomos atendidos por um brasileiro". Quando ouvi isto fiquei sem graça, porque não tinham percebido a minha nacionalidade. Respondi que era brasileira e tentei ao máximo acelerar o trabalho para me ver livre da situação constrangedora que aconteceu", recorda a jovem, que recentemente se mudou para França.
Rita Ribeiro sublinha que este tipo de situações ocorrem não só em Portugal como em outros países da Europa, mas os laços históricos que o povo português e o povo brasileiro partilham não demonstram ser suficientemente fortes para colocar de lado as diferenças.
"Antilusitanismo"
Para Ana Paula Santos, "a adaptação a uma sociedade é um exercício que exige tanto da comunidade brasileira como da portuguesa, porque a integração não é unilateral", e exige esforços de todos os membros envolvidos, afirmando que por parte dos brasileiros também existe, muitas vezes, uma desconfiança.
Na perspetiva de Carlos Fino, antigo jornalista da RTP e autor do livro "Portugal-Brasil: Raízes do estranhamento", não são só os brasileiros que sofrem de discriminação em Portugal, considerando que o problema é mútuo, já que existe um "antilusitanismo" no Brasil, que é alicerçado numa visão negativa de Portugal.
"Para se desembaraçarem das raízes portuguesas, tiveram de fazer do português o estranho. Esse sentimento antilusitano existe desde a origem da nacionalidade, está no ADN da identidade brasileira e tem sido alimentado até através dos média e do ensino", reforça.
O autor lamenta que, atualmente, Portugal ainda esteja "mediaticamente ausente do Brasil", o que "contribuiu para a permanência de um estranhamento". Ainda assim, evidencia que não há, por parte dos brasileiros, "xenofobia antiportuguesa", havendo, "de uma forma geral, simpatia", o que pode justificar as vagas migratórias que chegaram a Portugal nos últimos anos.
Testemunhos
Maria (nome fictício)"
Empregada de balcão
Ao saber que eu era brasileira, uma vizinha da minha sogra disse para a família ter cuidado, pois as mulheres do Brasil não prestam"
Leticia
Estudante
"Quando trabalhava num restaurante ouvi a frase: "olha, é o nosso dia de sorte, não fomos atendidos por um brasileiro". Fiquei sem graça"
Sandro Bueno
Barman
"A minha colega [brasileira] de trabalho disse que a máquina de café estava em manutenção a uma cliente. Pouco depois, o marido começou a gritar: "voltem para a vossa terra", e quase partiu para a violência física connosco"
Ana Paula Costa
Vice-presidente da Casa do Brasil
"A comunidade tem sofrido muito com a xenofobia e com o racismo devido a uma série de estereótipos que estão relacionados com os brasileiros, como a ideia de que as mulheres brasileiras são mais disponíveis sexualmente"