Na busca de petróleo e de gás em mercados alternativos, o Ocidente embarga o que pode à Rússia, mas a Europa ainda se vê forçada a pagar a conta que, indiretamente, financia a máquina de guerra de Putin. Só a fatura da Alemanha é de 50 milhões por dia. As opções são quase todas de risco ético e político: Qatar, Irão, Arábia Saudita, Venezuela.
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Perversidades da guerra e sarcasmo de um embargo comercial: à medida que avança com os blindados Ucrânia adentro, Putin enterra a unha na fatura energética dos europeus e impele-os a procurar alternativas de abastecimento em regimes malditos - como a Arábia Saudita, o Qatar, o Irão, a Venezuela, amigos de Moscovo... -, onde, na premência da crise, a "realpolitk" fecha os olhos às diabruras políticas e humanitárias denunciadas à Rússia.
A Europa que se quer furtar da dependência energética da Rússia e que retalia Moscovo pela invasão militar da Ucrânia, com represálias económicas e sanções de toda a a ordem, tem um motor, o da Alemanha, que continua a carburar com uma fatura diária de 50 milhões de euros de gás importado... da Rússia!
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A conta é semelhante em Estados-membros como a Áustria ou a Itália. Ou seja: após anos e décadas de abastecimento prioritário no gigante das estepes - em 2021, comprou 155 mil milhões de metros cúbicos de gás russo (45% do total das importações) -, a Europa não consegue libertar-se desta relação e vê-se, na pesagem de prós e contras, com duas saídas, qual delas a mais penosa: optar entre as perdas irreparáveis que o corte imediato da torneira russa causaria à economia continental, com as consequências sociais que daí adviriam; ou continuar a pagar a conta que, indiretamente, financia a máquina de guerra de Putin.
A política na encruzilhada ética
No dilema moral de Bruxelas prevalece, para já, a "realpolitik". Santos Silva, ministro português dos Negócios Estrangeiros, dá a nota da União Europeia [Lusa, 21 de março, 2022]: "Não estamos ainda numa fase em que possamos discutir sanções que passem pela proibição da importação de gás e petróleo da Rússia, embora esse seja um tema que está não apenas no debate público como também na concertação entre nós próprios [ndr: os 27 da União Europeia] e com os aliados que já avançaram para esse tipo de medida. Essas sanções eventuais, possíveis, não estão a ser preparadas, porque a situação dos Estados-membros é muito diferente no que diz respeito à exposição ao gás e ao petróleo da Rússia".
"A Rússia já não é um fornecedor fiável"
No caso de Portugal, a exposição "é baixa ou quase residual, o que aliás em parte justifica a decisão da companhia portuguesa que importava petróleo russo, de cessar essa importação", acrescentou Santos Silva, referindo-se à Galp Energia, que suspendeu a compra de produtos petrolíferos russos.
Apesar deste compasso, nem por isso a sentença da presidente da Comissão Europeia, proferida ao segundo dia da invasão da Ucrânia pela Rússia, perdeu peso [AFP, 26 fevereiro, 2022]: "A Rússia já não é um fornecedor fiável. Temos de cortar o cordão desta dependência energética e de desenvolver uma estratégia que nos torne completamente independentes do gás russo".
Seu dito, seu feito, Ursula von der Leyen acordou com o presidente norte-americano, Joe Biden, a importação de gás natural liquefeito. Ainda este ano, os Estados Unidos fornecerão à Europa 15 mil milhões de metros cúbicos suplementares. Washington comprometeu-se a aumentar o fornecimento anual para 50 mil milhões de metros cúbicos até 2030, à medida que a dependência europeia da energia russa for reduzida.
A Comissão Europeia também determina aos Estados-membros a obrigação mínima de 80% de armazenamento de gás para o próximo inverno, até início de novembro, para garantir fornecimento energético (a percentagem que deverá chegar aos 90% nos anos seguintes).
Berlim embarga megaprojeto de 11 mil milhões
De toda esta nova estratégia de embargo a Moscovo destacou-se o ato mais simbólico de todos: avaliado em 11 mil milhões de euros e concluído em 2021, o Nord Stream 2, um tubo submarino de 1230 quilómetros, que contorna a Ucrânia e o Báltico, entre a Rússia e a Alemanha, estava para entrar em funcionamento este mês, mas Berlim recuou no projeto, em retaliação pela invasão da Ucrânia pelas tropas russas.
Por esta obra faraónica, que Joe Biden classificou como "uma arma geopolítica" da Rússia, previa-se que fossem canalizados 110 mil milhões de metros cúbicos por ano (78% das importações de gás da Europa).
A suspensão do projeto teve igualmente forte impacto em grandes multinacionais do setor, designadamente as alemãs Uniper, Wintershall, a austríaca OMV ou a britânica Shell, que comparticiparam na construção do "pipeline". Outra subsidiária da obra, a francesa Engie, já declarou como perdas os mil milhões que investiu.
A escapatória para o urso russo
Se teve o alcance simbólico que pretendia, o embargo do Nord Stream 2 ficou-se pelos efeitos platónicos, sem resultados práticos, porque o irmão mais velho, o Nord Stream 1, operacional desde 2012, persiste em funcionamento pleno. É por aqui que continua a chegar o gás russo importado pela Europa - 140 mil milhões de metros cúbicos em 2021 (os outros 15 mil milhões foram em gás natural liquefeito).
Pelos corredores diplomáticos, a operacionalidade deste pipeline é vista com uma forma de não cercar completamente o urso russo e de deixar uma escapatória permanente para a negociação (como também se interpreta o facto de o banco do grupo Gazprom ter escapado às sanções e à suspensão da rede SWIFT imposta a outros sete balcões financeiros russos).
Nada de novo, portanto, nestas gincanas da política internacional, em corredores para conceitos práticos e pragmáticos, em detrimento de questões ideológicas ou de factos incontornáveis da atualidade, como a invasão da Ucrânia. Por ali, ética também é uma noção abstrata. Acontece que desta matriz estratégica e política, em plena economia de guerra, surgem também novas dependências, igualmente tóxicas...
"Se não recebermos mais gás no próximo inverno, não teremos o suficiente para manter todas as casas aquecidas"
Negócio prático e pragmático com o Qatar
Fortemente dependente da Rússia, de onde importa 60% dos gás que lhe alimenta o aparelho produtivo, a Alemanha procurou muito rapidamente uma alternativa para ir planeando a eliminação progressiva da dependência dos combustíveis fósseis do gigante eslavo. Achou-a num país, o Qatar, que está longe de ser um exemplo em matéria de direitos humanos.
"Se não recebermos mais gás no próximo inverno e as entregas da Rússia forem limitadas ou interrompidas, não teremos o suficiente para manter todas as casas aquecidas e a nossa indústria a funcionar", disse à rádio Deutschlandfunk o ministro alemão da economia, Robert Habech, à entrada para a ronda de negociações em Doha.
O Qatar, de quem se suspeita ter obtido a organização do Mundial de futebol de 2022 de forma pouco transparente - e onde, segundo organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, terão morrido 6500 trabalhadores imigrantes, vítimas de acidentes de trabalho na construção dos estádios para o torneio - tornou-se independente do Império Britânico em 1971 e tem sido governado desde então pela família Al-Thani, sob a forma de uma monarquia absoluta, que aplica a lei islâmica. Tem menos de três milhões de habitantes e é descrito pelo "Índice de Democracia" como um "regime autoritário". Em 2021, este ranking anual publicado pela revista "Economist" colocou o emirado no 114.º lugar entre 167 países na escala da democraticidade.
Na hora de negociar com o emir Tamim bin Hamad Al Thani e de assinar a parceria energética a longo prazo, ao ministro da Economia alemão, Robert Habeck, nada disso lhe ocorreu. Também foi prático e pragmático. Explicou que as empresas que o acompanharam a Doha ficaram de fixar os termos dos contratos, mas não deu pormenores sobre os montantes acordados.
Segundo Habeck, o acordo com o Qatar inclui não só o fornecimento de gás natural liquefeito, de que o emirado é um dos maiores exportadores mundiais, mas também a expansão das energias renováveis e medidas de eficiência energética. A Alemanha planeia construir terminais de gás natural liquefeito para diversificar as suas fontes de energia.
Estados Unidos seduzem Nicolas Maduro
Quase em segredo diplomático, entretanto, outra negociação improvável decorreu nas últimas duas semanas. Com vista ao mesmo embargo à Rússia, os Estados Unidos bateram à porta da proprietária das maiores reservas mundiais de petróleo, a Venezuela, de Nicolas Maduro, amigo de Putin e aliado tradicional de Moscovo.
Antes das sanções aplicadas ao regime de Maduro, em 2019, os Estados Unidos importavam da Venezuela 650 mil barris por ano, quantidade semelhante à que encomendou à Rússia em 2021. E ainda que lhe custe, Washington quer, agora, restabelecer relações com Caracas, para repor os stocks perdidos com o embargo total à Rússia.
Para amaciar o regime de Maduro, a Casa Branca estará disposta a levantar as sanções económicas a Caracas. Acontece que dois anos de represálias comerciais e financeiras e uma profunda crise económica deixaram o setor energético do país e respetivas estruturas num estado piedoso, com produção muito inferior à da década anterior e incapaz de socorrer imediatamente os países ocidentais. Em 2020, a Venezuela produziu 600 mil barris de petróleo por dia (um milhão por dia antes das sanções).
Falta ainda saber se Maduro está disposto a trair a fidelidade e o apoio indefetível a Putin - manifestado pelo reconhecimento das regiões separatistas do Donbass e pela pronta aprovação da ofensiva militar russa na Ucrânia - ou se prefere manter a lealdade ao mestre do Kremlin, que lhe será sempre mais segura, para o caso de a situação política e social se tornar mais adversa ou demasiado perigosa para o atual regime e para os membros do Governo perseguidos pela justiça americana.
A Arábia Saudita e "as crenças desviantes" com o Irão
Das leis da oferta e da procura também nem sempre se faz o mercado global do petróleo (consumo mundial diário de 99,7 milhões de barris). Tudo porque aos maiores produtores mundiais, agrupados na OPEP, também não estão dispostos a aumentar a extração para aliviar os mercados.
Por tal motivo, a Europa e os Estados Unidos desdobram-se em diplomacia comercial para diversificar os pontos de abastecimento, ainda que à custa de muita cedência ética e política, como se verifica nas negociações com um reino do petróleo, o da Arábia Saudita, que, apesar de todas as promessas de reformas, nomeadamente no campo judicial, mantém sentenças muito correntes de pena de morte. Foi o que sucedeu ainda há duas semanas, no último dia 12: enquanto negociava o reforço de abastecimentos com emissários ocidentais, Riade executou 81 detidos em manifestações contra o regime, no que constituiu a maior execução massiva da história do país - num só dia, duplicou os executados de todo o ano de 2021 (41).
Sentenciados por "crenças desviantes", eram todos da comunidade religiosa xiita, maioritária no Irão e fortemente discriminada pelos sunitas da Arábia Saudita, o que tem alimentado todos os antagonismos entre os dois países, já confrontados na guerra do Iémen. Em retaliação às execuções, a república islâmica suspendeu imediatamente as negociações que mantinha com os sauditas para a obtenção de acordos de segurança regional.
O ténue equilíbrio do Médio Oriente
No contexto internacional marcado pela guerra na Ucrânia, a disputa entre dois dos maiores produtores mundiais de petróleo reabre a questão do equilíbrio no Médio Oriente, ainda mais numa altura em que o Irão também aproveita a conjuntura para reforçar o programa nuclear do país.
Com uma capacidade de produção de mais de 10 milhões de barris por dia, a Arábia Saudita sabe que está em posição de força para solucionar a crise energética mundial e conta usar essa primazia nas negociações com os países ocidentais e ainda mais agora, que as relações com os Estados Unidos já tiveram melhores dias.
Tirando o mandato de Donald Trump, que tolerou o regime de Moahmmed Ben Salmane, Washington volta a questionar a utilidade do aliado e a censurar-lhe o regime, que Joe Biden classifica como "despótico". Riade também duvida da fiabilidade dos americanos para lhes garantir a proteção prometida com base no pacto "petróleo por proteção", assinado em 1945.
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Apesar de todas estas hesitações e ainda que nos últimos anos Riade se tenha a aproximado da China e da Rússia, Joe Biden deu uma prova de toda a consideração pelo aliado, instalando-lhe sistemas Patriot (mísseis terra-ar e plataforma antimísseis balísticos), para prevenção de ataques dos inimigos, supostos ou reais, designadamente os xiitas do noroeste do Iémen. Tudo ajustamentos estratégicos, porque Washington não fecha a porta ao inimigo histórico de Teerão.
A conjuntura internacional nunca foi tão favorável à normalização das relações internacionais com o Irão, depositário da terceira maior reserva mundial de petróleo e capaz de produzir 2,5 milhões de barris por dia, se lhe levantarem as sanções internacionais, o que poderá suceder nos próximos meses. E até com um bónus para Teerão: a ratificação de um novo programa nuclear. Tudo o que Riade mais teme.
A França, a Ibéria e o túnel dos Pirenéus
Em todos estes reposicionamentos internacionais entra também o terceiro maior fornecedor de gás natural, a Argélia, que já anuncia um investimento de 36 mil milhões de euros, até 2026, para exploração, produção e refinamento de gás. Desde logo, o Governo de Argel perspetiva as novas geografias da distribuição, desde Portugal e Espanha até França e até ao centro da Europa, muito possivelmente através de um novo pipeline, sob os Pirenéus.
Desde Paris, o ministro gaulês dos Assuntos Europeus, Clément Beaune, também manda dizer que "a França já não tem reticências" ao desenvolvimento das interconexões energéticas com a Península Ibérica, há muito reclamadas por Portugal e pela Espanha.
Face à escalada de preços e à necessidade de a Europa diversificar as fontes de aprovisionamento, Beaune esclarece que a França está disposta a acelerar o processo, sobre o qual admitiu ter havido reservas no passado.
"Não temos reticências. Foi o caso no passado, é verdade. Havia problemas antigos que levantavam questões, designadamente problemas de ordem ambiental, pelo que será necessário reconsiderar alguns projetos. Mas a ideia de que precisamos de interconectar melhor o nosso mercado, à luz desta crise, é sem dúvida importante", disse o ministro francês.
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Costa: "Foi um disparate desconsiderar o problema geoestratégico"
Na semana passada, após uma reunião em Roma com os homólogos de Itália, Espanha e Grécia, o primeiro-ministro português afirmou-se convicto de que a França tem agora consciência da importância das interconexões com a Península Ibérica. António Costa lamentou que o projeto não tenha sido concretizado na década passada.
"As questões que foram colocadas pelos reguladores estão hoje ultrapassadas. Diziam que, face à abundância de fornecimento de gás, da Rússia, designadamente, não havia necessidade de o mercado reforçar este abastecimento. Sempre achei que foi um disparate ter limitado essa análise a meras condições de mercado e desconsiderar o problema geoestratégico que estava subjacente. A União Europeia não pode estar no grau de dependência energética que está relativamente à Rússia. Se tivéssemos feito essas interconexões quando elas foram acordadas, a Europa não estava neste problema de dependência", concluiu António Costa.