Há vários dias que não via a senhora do quinto andar. Não sei quem é. Vi-a, da minha varanda, no dia em que chegamos a Kiev. Estava a fumar na varanda dela e, na divisão ao lado, uma criança, de uns quatro anos, brincava, descontraída. A senhora do quinto e a janela do oitavo são os únicos sinais de vida do prédio que avisto.
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É um edifício de 15 andares, com centenas de apartamentos. De dia, parece todo igual, mas quando cai a noite apenas duas janelas se iluminam. A da senhora do quinto e a do oitavo andar. Nos últimos quatro dias, conseguia perceber que a televisão continuava ligada, pelas oscilações de luz que emanava através das cortinas translúcidas. Mas nenhum sinal da senhora do quinto e da criança. Um balão amarelo esvoaçava levemente, entre o vidro e a cortina. Eles deviam estar em casa, mas sem deixar que os vissem.
Kiev está assim. Penso sempre onde estará o milhão e meio de habitantes que permanece na capital, sem intenções de sair. Alguns, poucos, cruzo-me com eles na rua, durante o dia. Mas, se for contar, na zona da baixa da cidade, não serão mais de uma centena. E os outros? Provavelmente, farão como a senhora do quinto, fechados em casa, à espera. É o que acontece, por estes dias, em, Kiev. A espera. As notícias dizem que "a qualquer momento" os russos podem entrar na capital. Os postos de controlo dentro da cidade são cada vez em maior número, e mais sofisticados. Dos sacos de areia e pneus, passamos para guaridas em betão. Os "espigões" são cada vez mais e a rua que ontem estava livre, hoje já tem um check point para atravessar.
Fora dos limites da grande capital, as tropas russas lutam por conquistar cidades satélite que lhes podem dar acesso, por estrada, ao centro de Kiev. O cerco está quase a fechar-se. Nesta altura, há uma nesga a sul, por onde passa o comboio e a auto estrada. De resto, as posições russas já controlam o perímetro. Quando as sirenes não tocam, ouvem-se disparos da artilharia antiaérea ucraniana. Esses são sem aviso, claro, mas fazem estremecer o chão e ecoam nos ouvidos como se fossem fogo inimigo. São, afinal, fogo defensivo e mais um sinal de que as tropas ucranianas estão atentas e à espera.
Nas várias autoestradas que ligam os subúrbios à capital, os militares e a defesa civil montaram já "armadilhas" para impedirem a entrada dos tanques russos: minas, valas, trincheiras, reserva de cocktails molotov, posições estratégicas para snipers e postos de observação. As colunas militares preferem as retas, as retas dão acesso a Kiev, e é nestes acessos que se concentra a maior parte do esfoço de defesa ucraniano.
A incerteza, a espera, o estado de permanente alerta ataca todos os dias, a toda a hora. O sobressalto no sono, o som impiedoso e agressivo das sirenes, a convicção de que "alguma coisa" vai acontecer, mas o não saber quando vai acontecer. É uma dor lenta, uma constante inquietação.
Hoje, vi a senhora do quinto.
Veio fumar à janela.