Azeredo Lopes: “Maior perigo para a Europa não é Putin ou Trump. São os europeus”
Na entrevista JN/TSF, o professor universitário Azeredo Lopes olha para a realidade geopolítica atual com desconfiança, aponta erros de comportamento à Europa, antevê um ascendente russo no conflito a Leste, manifesta grandes reservas sobre a paz no Médio Oriente e antevê um Trump mais bem preparado.
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O atual estado do Mundo, a invasão da Ucrânia e a Rússia encarada como adversário, a leitura política que do lado ocidental normalmente se faz, tudo isso pressiona os governos a gastarem mais em defesa… O primeiro-ministro, Luís Montenegro, compromete-se a acelerar o prazo para Portugal cumprir os 2% de despesa do PIB em defesa, mas continua a ouvir - do lado da NATO - que isso não chega. Irá, na sua opinião, obrigar o país a elevar em termos quantitativos o contributo para a Aliança?
Acho que sim, acho que vai obrigar-nos a gastar mais, mas eu gostaria que cada vez mais o debate estivesse muito menos na ideia de gastar mais e na ideia de nos defendermos melhor. Parece-me que esse debate ainda está por fazer, no essencial. E, por enquanto, pelas circunstâncias que referiu, porque vivemos, diria eu, num estado de crise permanente, praticamente desde o início do século, nós estamos, de facto, perante desafios cada vez mais apertados, do ponto de vista da nossa defesa, do ponto de vista da garantia da nossa segurança e, sobretudo, do ponto de vista da nossa perceção sobre a capacidade de nos defendermos. E, por isso, o resultado tem sido sempre, sobretudo a partir de 2014, quando encontrámos, na Cimeira de Gales uma métrica, que dizia que a partir de agora 2% são o objetivo. Desses 2% do PIB nós temos que consagrar pelo menos 20% à aquisição de capacidades. E faltava ainda uma terceira parte, que é aquela que nós não gostamos de discutir, ou seja, quais são as contribuições de cada elemento deste grupo, por exemplo da NATO, qual é a contribuição de cada Estado-membro para a segurança e defesa. E eu acho que isso prejudica, por acaso, Portugal, se é verdade que tem ficado sistematicamente aquém da realização dos objetivos aferidos pelo PIB, também me parece que Portugal tem muitos méritos, diria até que acima da média, considerando a nossa dimensão, do ponto de vista da participação em operações internacionais e de contribuições para a defesa comum, seja no quadro europeu, e aí podemos falar desde a Roménia, aos Bálticos, etc., seja também do lado sul do Mediterrâneo, onde, por exemplo, somos dos poucos países europeus que ainda hoje consagram e dão uma força de elite a uma missão das Nações Unidas, neste caso, na República Centro-Africana. Eu não gosto de agourar, mas a verdade é que vemos a tragédia que está a acontecer atualmente no Congo e vemos muito menos do que quando chegámos à República Centro-Africana, embora evidentemente com os desafios que são de todos os conhecidos.
Recursos que o país tem como praticamente nenhum outro do ponto de vista estratégico, e estamos a pensar na Base das Lajes, não deveriam entrar nessas contas?
A questão da Base das Lajes é um bocadinho diferente, uma vez que envolve uma relação com o nosso aliado transatlântico, o aliado, por excelência, diria eu, do continente europeu, pelo menos, desde a Primeira Guerra Mundial, mas sobretudo a partir do momento em que se inicia a Guerra Fria. O valor facial das novas aeronaves militares foi diminuindo, digamos assim. E, portanto, desse ponto de vista, eu olharia mais para as contribuições que as nossas forças estão disponíveis para fazer no apoio à promoção da paz, à garantia da paz, a ações preventivas, etc. O Kosovo foi, como sabem, um palco onde nos empenhámos durante muito tempo. Mas nós temos, repito, desde o Afeganistão a Timor, muitos sítios, o Líbano, onde ao longo dos anos Portugal foi mostrando que tem a vontade e a capacidade para atuar com competência na promoção da paz e, sobretudo, na ideia de uma defesa cooperativa, que é outra questão que nós temos muita dificuldade em discutir. Falamos da NATO como a nossa principal aliança política ou militar, esse para mim é um aspecto absolutamente indiscutível, que eu creio que nem justifica grande debate, é ali o nosso coração da defesa comum e que o diga a Ucrânia, que está há dois anos e meio ou mais a tentar desesperadamente parecer ser um membro da NATO, parecer ser um membro que pertence a esta família. E porquê? Porque esta participação num conjunto comum, onde evidentemente a posição dos Estados Unidos é muito, muito maioritária, do ponto de vista das capacidades e do poder de dissuasão, a pertença a esta casa comum, se assim me posso expressar, tem depois um paradoxo, é que nós no plano europeu continuamos a falar de uma defesa cooperativa, falamos no plano da União Europeia de uma política de segurança e defesa comum, mas não falamos tanto de defesa comum e, sobretudo, evitamos muito falar de umas forças armadas europeias, de um exército europeu de pequena ou grande dimensão, embrionário ou não, que permita, no fundo, integrar e tornar mais eficiente os tais dois, três, o que seja que vier a ser decidido, de alocação do PIB a este esforço da defesa europeia.
Quem é o maior perigo para a Europa: Putin ou Trump?
Eu acho que somos nós (europeus). Eu acho que não é nem Putin nem Donald Trump. Eu acho que é, no fundo, o principal desafio que nós temos que enfrentar, que é uma certa menoridade política, que fomos aceitando por ser extremamente reconfortante. Ou seja, nós pressentíamos, ou achávamos, que de alguma maneira éramos tão importantes como os Estados Unidos, o nosso grande aliado, que não podia permitir-se perder-nos. E isso valeu-nos como um seguro de vida durante toda a Guerra Fria, porque, de facto, nós éramos uma espécie, desculpe a expressão que é feia, de naco do lombo, uma posta mirandesa comum, e ninguém podia permitir-se perder. A partir do momento em que colapsa o bloco soviético, por razões evidentes, e a partir do momento em que também vê outras paragens a assumirem um protagonismo crescente, que hoje é absolutamente dominante, estou a falar, por exemplo, do Indo-Pacífico, então o tal naco de carne apetecível, tornou-se cada vez menos necessário. A partir desse momento, nós fomos compreendendo uma coisa: ou superávamos essa espécie de adolescência ou menoridade política que nos diminuía e procurávamos fazer com que, independentemente de uma aliança firme com os Estados Unidos, pudéssemos também prever, efetivamente, a nossa defesa, ou ficaríamos cada vez mais dependentes. E essa dependência, reparem, é uma dependência do medo, da insegurança, que eu compreendo perfeitamente relativamente ao tal flanco leste que referiram em primeiro lugar, o flanco leste que é representado essencialmente pelos bálticos, pela Finlândia, pela Polónia, enfim, por todos aqueles que permitiram perceber, em 2014, que havia uma espécie de dois mundos que coexistiam dentro da nada. Depois, estou a referir-me evidentemente à intervenção da Rússia na Ucrânia, à anexação da Crimeia e, no fundo, ao caos que se foi semeando no Donbas, e que depois veio a explodir em 2022.
Mas a crise europeia não começa a 24 de fevereiro de 2022, ou se calhar nem começa em 2014.
Nós vivemos numa crise permanente. Este estado de crise permanente, a palavra não é minha, o termo não é meu, é uma palavra que hoje está mais ou menos consolidada no pensamento de segurança e defesa, que é a circunstância de a crise ter passado a ser o nosso novo normal. Nós estamos habituados, das antigas gerações, a ver bons tempos, pior tempo, crise, superação da crise, desenvolvimento. E nós estamos, neste momento, a gerir, desde há décadas, uma situação de crise permanente. Exemplos: a ex-Goslávia, em 1995, o Kosovo, em 1999, a crise que resulta dos ataques do 11 de setembro e a guerra no Afeganistão, a invasão do Iraque e a divisão que isso causou entre alguns estados europeus, estou a pensar na França e na Alemanha, mas também nos Estados Unidos. Continuamos numa a crise económico-financeira. Fomos o último bloco a sair da crise. Já estavam os outros a pensar na vida, já estavam os outros a preparar-se para outra crise, e nós ainda estávamos a lamber as feridas, a aplicar sanções, a dar tau-tau nos incumpridores.
E agora vem aí um temporal, como é que antecipa a relação transatlântica para os próximos tempos?
Eu não gosto muito de fazer extrapolações, mas olho em relação ao que conheço, e conheci diretamente o que foi o primeiro mandato do atual presidente norte-americano, e então percebo que está a falar de uma intervenção nas relações internacionais muito diferente daquilo a que estávamos até agora habituados, ou seja, uma intervenção que eu diria quase empresarial. E aqui vou utilizar os termos o mais possível de forma neutra para não transformar isto numa espécie de intervenção militante contra o presidente dos Estados Unidos. Ele encara as relações internacionais como uma dimensão de barganha, de afirmação de poder e, portanto, ele exerce a pressão que considera adequada às vezes que nós, do nosso lado, achamos extravagante, excessiva, absurda, assustadora. Estou a pensar neste caso mais imediato, por exemplo, na Gronelândia. Isto seria uma coisa impensável há 20 anos. A ideia do nosso principal aliado dizer: apetece-me aquele pedaço de terra porque considero importante para a minha segurança. E o Estado soberano dizer: mas isto não está à venda, isso eu não quero saber, eu não quero saber. E isto é uma forma muito diferente daquela que estávamos habituados, mas para a qual fomos também dando o nosso necessário contributo. Eu acho que o fim da história de que falava Fukuyama, quando acabou a Guerra Fria, induziu-nos naquela perspectiva um bocado inebriada e um bocado arrogante de que agora o nosso modelo de sociedade vingou, agora a nossa concepção de organização do mundo vingou, e portanto nós agora precisamos menos das Nações Unidas. E, aqui entre nós, o abuso do poder não foi só por parte dos Estados Unidos, foi também por parte de uma Europa que, de repente, achava que fazia parte do grupo dos vencedores e que, vejam lá, só para perceber que mais vezes as palavras têm um sentido muito carregado, nós deixamos de falar em ordem jurídica internacional ou numa ordem internacional regulada pelo direito para falarmos de uma ordem internacional baseada em regras. Não sei se estão a perceber a subtileza. Baseada quer dizer que não é exclusivamente assente em regras. E essas regras podem ter uma dimensão jurídica, política, de oportunidade, de poder. Ora, isto só vale, falando em termos muito egoísticos, se nós estivermos na posição prevalecente. Porque se estivermos por baixo, de repente, quando alguém nos começa a aplicar uma ordem internacional baseada em regras, nós podemos achar menos agradável. Este exemplo da Gronelândia é, no fundo, o nós compreendermos que se formos nós o destinatário da invocação de um interesse superior que até ultrapassa o direito, não achamos muito interessante e, sobretudo, ficamos cheios de medo. Medo, entenda-se também isto com um grão de sal, não é? E é isso que nós, de facto, vamos ter que enfrentar e a que nos teremos de adaptar. Se não o conseguimos fazer, acho que vamos pagar muito caro. Ou seja, se nós não conseguirmos, e não estou a falar de uma lógica de oposição aos Estados Unidos, eu prefiro muito mais insistir numa lógica de afirmação de uma unidade própria no quadro da União Europeia e uma União Europeia que não pretende ser independente da NATO. Nós não estamos aqui a falar de nenhum grito do ipiranga político. Eu acho que a sustentação dos europeus continua a ser, do ponto de vista da defesa, principalmente garantida pela NATO, mas acho que o nosso contributo para a defesa comum e o nosso contributo para uma soberania em área de defesa será cada vez mais corroído quanto menos conseguirmos afirmar-nos como um todo e propor, no fundo, uma solução que nos integre cada vez mais e que tem depois, podemos falar sobre isso, exemplos muito concretos, que são até dramáticos, do ponto de vista de interoperabilidade, do ponto de vista da mobilidade, do ponto de vista aquisitivo, do ponto de vista da aquisição de capacidades. Eu recordo que, atualmente, em 2024, os países da União Europeia já terão gasto 2% do PIB em média em defesa, e alguém é capaz de dizer que nós consideramos que o trabalho está concluído, que nos sentimos mais seguros? Eu diria que não, eu diria que não. E, portanto, como normalmente os números e as percepções enganam-se relativamente pouco, isto quer dizer que, provavelmente, vamos ter que gastar mais do que este objetivo de 2%, mas também, provavelmente, teremos que pensar muito melhor a forma como o vamos gastar, no sentido de sermos capazes de nos aproximarmos gradualmente de uma força minimamente integrada que não faça com que haja 20 e tal cabeças pensantes sobre aquilo que para cada um é pouco mais do que um quintal.
Deixe-me voltar um bocadinho atrás, para lhe perguntar se, no seu entendimento, o Ocidente subestimou a Rússia neste conflito com a Ucrânia.
Eu penso que subestimou a dois títulos. Estou à vontade que me enganei, enganei-me redondamente, porque me parecia, no início de fevereiro de 2022 (porque eu penso como um ocidental, cada um também é escravo das suas circunstâncias), que era perfeitamente irracional, do ponto de vista económico, do ponto de vista político, do ponto de vista da vantagem que pudesse obter, que era perfeitamente irracional que Vladimir Putin lançasse uma invasão em larga escala contra a Ucrânia. Eu subestimei duas coisas. Primeiro, algo com que eu não concordo, mas que hoje compreendo melhor, que era o facto de o aparelho de poder em Moscovo, liderado por Vladimir Putin, realmente considerar esta uma questão existencial. Para nós parecia ridículo, quer dizer, o que é que a Ucrânia podia representar como uma ameaça real contra a Federação Russa? Subestimei, em segundo lugar, como acho que subestimámos quase todos, a circunstância dos acontecimentos que levaram ao derrube do governo de (Vítor) Yanukóvych (ex-presidente da Ucrânia de 2010 a 2014). Vimos do lado bonito as manifestações da Praça Maidan, mas eles leem como um golpe de Estado para impedir um presidente eleito de se associar à Rússia. Nós achamos que isto tinha passado, mas não tinha passado de maneira nenhuma. Foi um erro subestimar a dimensão existencial que esta questão tinha para Moscovo.
Essa ideia, que está de alguma forma associada também à ideia romântica do Império Russo, foi subestimada por alguns governos europeus e pela administração Biden? Tiveram dificuldade em compreender essa mentalidade russa de que fala?
Os americanos, é bom termos presente, porque às vezes esquecemos, praticamente sabem tudo e ouvem tudo o que acontece no Mundo. Portanto, os americanos sabiam, e há aliás livros muito engraçados em que são os próprios atores que intervieram nesse momento que explicam como era difícil para eles, na administração Biden, saberem que ia realmente acontecer uma invasão e não conseguirem convencer sobretudo os europeus. A maior parte dos Estados consideravam que não ia acontecer um conflito, portanto, desse ponto de vista cometemos um erro capital. A administração Biden, de uma forma muito tradicional, muito clássica, também a meu ver ineficiente, e depois que eu acho que até agravou e transformou tudo isto numa questão ainda pior, a administração Biden escolheu a estratégia do naming and shaming, ou seja, de dizer em público e em alta voz que o agressor ia atacar. E, portanto, isto transformou, pouco a pouco, aqueles dias antes do início do conflito numa coisa trágica, em que começávamos a perceber que ia acontecer.
Até é um pouco paradoxal, não é? Anunciaram que ia acontecer, mas para fazerem passar a ideia de que não ia acontecer, no fundo.
E, no fundo, para induzir o potencial agressor, a esta ideia: eu sei que vais agredir e ainda vais a tempo de recuar. Esta estratégia do naming and shaming, do insulto, da agressão, a meu ver, também contribuiu grandemente para transformar isto numa questão existencial para os dois lados. Ora, quando uma questão é existencial para os dois lados, a tendência é para só poder parar quando um colapsar ou quando um disser já chega, eu perdi. Nós vivemos imbuídos na ideia de que a nossa sociedade produz muita riqueza, que tem uma grande capacidade industrial, que economicamente não tem qualquer comparação com a Federação Russa. Eu recordo, aliás, de haver imensas análises em que, de forma, assim, um bocadinho de lá de cima, se dizia que a Rússia tinha uma economia parecida com a da Itália. Quer dizer, não pesa nada. O orçamento de defesa da Rússia é, salvo erro, de 126 mil milhões. Os europeus, vejam bem, gastaram em 2024 326 mil milhões de euros. O orçamento da Rússia é de 126, anda por aí. O dos Estados Unidos é 850 mil milhões de euros. Portanto, nós achávamos que, de alguma maneira, cometemos este erro capital, 300 e tal versus 100 e tal, já ganhamos. Não ganhamos coisa nenhuma, porque uma coisa é o que se gasta, outra coisa são as capacidades que se obtêm e, no fundo, a capacidade militar que daí resulta. Mas nós teremos subestimado a Rússia num ponto fundamental, que é das famosas sanções. Nós consideramos, bem, a meu ver, que uma guerra também é um produto económico, ou seja, as guerras sustentam-se enquanto houver dinheiro para as pagar, enquanto houver capacidade produtiva, enquanto se puderem alocar recursos humanos à indústria, mas também à frente de batalha e por aí adiante. Precisamos de pessoas, precisamos de dinheiro, precisamos de tecnologia, precisamos de capacidade produtiva. A nossa convicção era a seguinte: se aplicarmos um sistema de sanções como nunca foi aplicado, achávamos que mais tarde ou mais cedo a Rússia de repente ia ser como um baralho de cartas que se abria e caía para o lado.
E isso não aconteceu...
E não aconteceu por duas razões. Primeiro, porque sobrevalorizamos muito o potencial impacto das sanções. Eu recordo-me da presidente da Comissão Europeia a dizer que a Rússia ia estar de joelhos, imagem que eu teria evitado, mas não interessa, iria estar de joelhos rapidamente e ia recuar décadas do ponto de vista económico. Tudo isto vai acabar por acontecer. Agora, o que nós não percebemos foi o seguinte: a determinação russa (e isso, se lêssemos um bocado de História, já o teríamos percebido) e a capacidade de sacrifício russa é muito superior à nossa.
De resto, as sanções acabaram por não ter um impacto negativo na tal indústria da guerra russa...
Mas não se comprovou por outra razão: o que fizemos com isto foi empurrar de alguma maneira a Rússia para uma recomposição dramática das suas relações económicas. A Rússia hesitou sempre, nas últimas décadas, entre ser um destino mais asiático ou mais europeu. A Rússia decidiu que, contrariamente às nossas expectativas, conseguia, no fundo, quebrar a tradição. Nós achávamos que estávamos sujeitos a uma espécie de droga com a aquisição de gás e de petróleo barato. Recordo que íamos inaugurar o Nord Stream 2, 10,2 mil milhões de euros, é o que, quando custava aquela ligação, uma espécie de veia jugular vital para a Alemanha. A Alemanha ia passar a receber de forma célere, de forma económica, de forma sustentada, no fundo, um suporte decisivo para o seu crescimento económico e para a sua prosperidade. Através de um tubo. Passe o exagero. Mas o Nord Stream é muito mais do que um tubo. E, portanto, a partir do momento em que nós nos vimos obrigados a cortar - neste caso, aliás, por sabotagem, que nós, aliás, tivemos o topete de dizer que tinham sido os russos - achamos que a Rússia depois não conseguia refazer, desculpe a minha expressão, a clientela. Ora, a Rússia conseguiu fazer. E ao conseguir fazer, nós criamos um grupo de adversários também bastante poderoso, que perceberam que isto é errado, mas foi também a tal percepção deles a dizer: agora vão destruir a Rússia, a seguir somos nós. E, portanto, se a seguir somos nós, então vamos unir-nos para que isto não aconteça. Não percebemos, a meu ver, suficientemente depressa que a China, por exemplo, teria muita dificuldade em aceitar um colapso da Federação Russa. Desde logo por uma razão geopolítica óbvia: a Rússia tem uma fronteira de mais de 4 mil quilómetros com a China. Acham que a China ia aceitar de bom grado ter na sua fronteira norte um adversário? É que é um bocadinho primário. A Rússia e o Irão eram inimigos relativamente figadais. Hoje são 'best friends', são grandes amigos. Integraram a produção de drones. O Irão vai agora comprar não sei o quê à Rússia. Tem um acordo muito forte. A Índia, muito pragmática como sempre, disse eu não quero que ninguém morra, só quero que a vida me corra. E portanto a Índia hoje compra petróleo à Rússia em quantidades colossais com uma taxa de desconto muito importante. Devo, aliás, dizer, isso é mais interessante, foi no fim do mandato, ia dizer o extretor, mas isso estaria a ser injusto, foi no fim do mandato de Biden que adotámos pela primeira vez as sanções de longe mais eficientes que vão tocar na tal frota de navios-fantasma. E já há sinais claros, em termos de mercado, que a Rússia está a sofrer. Para concluir a resposta à sua pergunta, o que nós temos hoje perante nós é como se fossem dois jogadores de xadrez em cada um tem um relógio, carregam numa teclazinha, tic, tic, tic, para o relógio parar, ou ganha, ou então ganha porque aquela coisinha que mantém o pêndulo cai e perdeu, porque já não tem tempo. E nós neste momento estamos justamente como se fôssemos dois jogadores de xadrez. De um lado a Rússia, do outro lado a Ucrânia e nós. E cada um procura carregar mais depressa no botão para evitar que o tempo passe. E eu não tenho nada à certeza, infelizmente, de que neste jogo de xadrez o pêndulo caia primeiro do lado da Rússia.
Deixe-me virar o pêndulo, ou a bússola no caso, do leste para o ocidente, para colocar-lhe uma questão sobre os Estados Unidos. Uma das medidas mais mediáticas e sonoras da nova administração Trump tem a ver com o processo de deportações em massa. Como é que acha que vai acabar esse filme?
É um filme, de facto. É uma das medidas mais impactantes que Donald Trump anunciou já durante a campanha, e recordo-se que iam ser milhões, não sei se recorda que nos primeiros dias iam ser milhões, com as forças armadas envolvidas nisto, e também é uma coisa que temos que nos habituar sem nunca subestimar a determinação de Donald Trump. É que muitas vezes ele anuncia 200, quando o que ele pretende basicamente é 50 ou 60. E podemos estar a assistir a isso. Aliás, a enxurrada de decretos executivos que já foi adotada desde o início do mandato, desde o primeiro dia do mandato, para ser mais preciso, é um bocado demonstrativa disso. Providências cautelares, ações em tribunal, recuo em algumas medidas.
Mas ele desta vez parece ter-se preparado melhor juridicamente do que no primeiro mandato, não lhe parece?
Preparou-se muito melhor. Aliás, muitos consideram que, mesmo algumas questões constitucionais que eu acharia aberrantes, como aquela questão da reinterpretação da 14ª Emenda sobre a aquisição da nacionalidade com base no Usholi, muitos consideram que hoje as medidas que ela anuncia já estão muito mais blindadas em relação àquilo que grupos de direitos humanos tinham conseguido destroçar durante o primeiro mandato. Do ponto de vista das exportações, também. E, portanto, aqui a questão que se coloca é, mais uma vez, uma questão de poder. Vários países, o Brasil foi muito vocal quanto a isto, a Colômbia sabemos o que é que foi, e o que Trump conseguiu foi, com o exemplo da Colômbia, transmitiu uma mensagem. Trump, neste momento, tem uma arma muito anunciada, mas que...
As tarifas...
Exatamente. No fundo, as medidas aduaneiras. Trabalhar com a pauta aduaneira. É uma arma a dois gumes. Porquê? Porque isto é tudo muito bonito, mas se ele aplicasse tudo o que tinha dito, os Estados Unidos colapsavam economicamente. Porque, pura e simplesmente, deixavam de poder importar.
E os Estados Unidos também importam…
Claro, a União Europeia está hoje mais bem preparada, que já não estamos como os coitadinhos à espera que nos caia o céu em cima, como no Asterix. Portanto, há aqui uma gestão de expectativas em relação a muitos dossiês, esse da imigração vai acontecer. Não lhe vou mentir, acho que vai mesmo acontecer. Creio também que em números muito menos impressionantes do que aqueles que Donald Trump queria transmitir, só que isto vai causar problemas graves aos Estados da própria nacionalidade. O México está a preparar campos de tendas, o México que depende em 40% ou mais de 40% do seu comércio externo com os Estados Unidos, a Colômbia com o que disse o presidente...
Mas só durou duas horas…
Não fiz a contabilidade, sei que tinha sido muito pouco tempo infelizmente, e foi uma entrada de leão e uma saída pouco vigorosa. Foi muito mau o facto de a Colômbia ter sido humilhada publicamente, como aliás a porta-voz de Trump fez questão de anunciar. Aceitou e cedeu a tudo o que eles queriam. Foi muito mau porquê? Porque se transmite a ideia de um exemplo. Vejam o que aconteceu à Colômbia. E não é com certeza coincidência que, de repente, aqueles que falavam dos detidos algemados, às vezes espancados durante a viagem, nunca mais falaram do assunto. Nunca mais se falou de autorizações de sobrevoo de aeronaves militares que transportam deportados. E, portanto, nesse sentido, por muito que me custe reconhecê-lo, Trump ganhou. Não quer, no fim do dia ou no fim de semana, já está a pagar 25%. Se continuar com isto, passamos a 50%. Vamos ver quanto tempo é que aguenta. Portanto, esta questão foi um exercício puro de poder, na minha perspectiva. Infelizmente, desta vez, neste plano, correu bem a Trump. Não sei quanto mais tempo vai durar, considerando a circunstância de os Estados Unidos ser uma máquina muito importante que precisa de mão de obra barata.
O presidente dos Estados Unidos aposta muito neste acordo de cessar-fogo no Médio Oriente. Pensa que é um acordo que tem condições para se aguentar nas próximas fases?
Continuo a achar, porque é de justiça, que foi a intervenção antecipada da administração de Trump, através desde logo do seu enviado e através da ameaça que ele tinha feito parar sobre a continuação das hostilidades, que foi decisiva para que Israel se visse obrigado a aceitar um cessar-fogo. Um cessar-fogo, que podem me dizer o que quiserem, parece muito mais doloroso para Israel do que para o Hamas, não só porque Israel sentia que estava completamente por cima, porque, além disso, na execução do cessar-fogo, o Hamas transmitiu uma imagem, porventura errónea, mas, repito, nós hoje dependemos muito da imagem, às vezes menos da realidade objetiva, de poder, de organização, e as cerimónias de libertação dos reféns foram justamente uma ocasião fantástica para o Hamas mostrar que os seus combatentes estão fardados, que estão camuflados, que têm poder, que são capazes de regular a vida em Gaza.
Porque é um nó na garganta para o governo de Israel e que pode dificultar as próximas fases do acordo, nomeadamente aqueles pontos que preveem a saída dos militares israelitas por completo da Faixa de Gaza.
Sim, e aí é que eu começo a ter dúvidas. Primeiro porque isso não é nada que resulta automaticamente da aplicação do acordo de cessar-fogo. Uma vez começado, este acordo é como tudo, tem um momento feliz, felizmente os e as reféns estão a ser libertados, os militares estão a ser libertados, isto é um momento de festa, para os palestinianos a libertação de centenas de pessoas das prisões, muitos deles menores, é outro momento de festa, alguns são deportados porque cometeram crimes de sangue ou por outras razões. Bom, esta é a parte boa da história. A parte menos boa da história é que estamos a chegar ao dia em que é necessário iniciar as negociações para dar execução e aplicação possível às restantes fases do acordo. Portanto, aquelas que permitam uma consolidação do cessar-fogo, a libertação de todos, sem exceção, os detidos ou reféns e a entrega, infelizmente, daqueles que já apareceram em Gaza. E, depois, finalmente, entramos numa fase 3, que é uma espécie de Eldorado meio esquisita, que é a fase da reconstrução. Uma fase da reconstrução que muitos calculam poder ser ou representar uma verba muito acima de 80 mil milhões de euros. Só o que está em destruição, ou seja, edifícios, material destruído, etc., é muito maior naquela faixa de 360 km² do que tudo o que a Rússia já conseguiu destruir na Ucrânia. Para termos uma noção da envergadura da destruição que foi cometida na Faixa de Gaza. E isso implicaria também que nessa fase 3 Israel teria que deixar os palestinianos regular aquilo, com uma verificação internacional qualquer que ela fosse, não querendo o Hamas, coisa que eu consigo compreender. Eu não tenho muita certeza, não sou muito, muito otimista, se calhar já é da minha natureza não ser muito otimista nestas coisas, porque eu começo a ver demasiados sinais preocupantes. Um dos quais foi dado por Donald Trump, o primeiro dentro de um avião no Air Force One, quando ele, no meio de um corredor do avião, diz que de repente aquela gente, de qualquer modo, não pode ficar ali, temos que limpar. Aliás, a expressão limpar Gaza é assim uma coisa...
Quase incitando à limpeza étnica.
Isso é você que é um diplomata. Eu tirava ao quase, porque eu acho que há ali no fundo uma descrição de um objetivo que o chefe de Estado do principal país do Mundo considera ser a forma de conseguir a paz na região. Mas de facto também é verdade, tem razão. Temos um inimigo perante nós, um adversário. Um coletivo de pessoas que consideramos adversário. Qual é a melhor solução? É mandá-los embora. É eliminá-los ou mandá-los embora. E portanto, não sei se ele tem consciência, eu já aprendi a acreditar que nada disto é demasiado inocente. Se juntarmos a isso também a circunstância de Donald Trump dar um sinal claríssimo de apoio a Benjamin Netanyahu, ao confirmar para 4 de fevereiro a visita de Benjamin Netanyahu a Washington, representa uma consagração incrível do primeiro-ministro israleita. Recordo: alguém sobre o qual pende um mandado de detenção do Tribunal Penal Internacional.
É o primeiro a ser recebido por Donald Trump na Casa Branca, o primeiro chefe de Estado estrangeiro. É um sinal muito importante.
É um sinal muito importante. Mas quando vemos o que tem sido dito sobre o reconhecimento pleno do direito de legítima defesa de Israel, isso significa também que os Estados Unidos aceitam a tese de Israel, segundo a qual essa legítima defesa ainda não está concluída. E a partir daí começa a juntar dois mais dois, ou seja, Israel faz uma pausa em Gaza, mas intensificou os bombardeamentos e ataques na Cisjordânia. Qualquer dia está praticamente anexada, definitivamente, por Israel. E, portanto, tudo parece encaminhar-se devagarinho, eu já nem comento sequer aquela observação sobre a qualidade dos terrenos de Gaza junto ao mar, vejam lá, uma espécie de Foz, ou de Linha de Cascais para a região, porque isso prefiro evitar comentar, tudo isto parece confluir numa interpretação que não é muito otimista, ou seja, em que a partir do momento em que se sinta que o essencial dos reféns já está do lado de cá, é uma análise que é fácil de fazer.
O senhor professor disse um dia que os políticos que se impõem levam sempre grandes castanhadas. Pergunto-lhe se Tancos foi a sua castanhada política.
Ai, Tancos é passado. Eu nem vou referir-me a isso.
Já esqueceu? Já passou?
Não, eu não esqueço nada. Nestas coisas procuro não esquecer. O que não valorizo é demasiado o episódio da minha vida, que também me fez crescer em algumas dimensões.
Aceitaria desempenhar outra vez algum cargo ministerial?
Não, isso não. Não é sequer um cargo ministerial. Eu entendo que eu dei duas vezes para a causa pública, quer com o presidente da ERC, quer com o ministro da Defesa. E no essencial realizei-me nessas funções. Não tenho mais nenhuma vontade de exercer funções públicas e gosto imenso do que estou a fazer.