No período entre o nascimento de Jorge Mario Bergoglio e a sua ida para o Vaticano, a Argentina teve 31 presidentes da República. A instabilidade política foi motivada por renúncias, golpes de estado, revoluções e ditaduras, o que fez com que algumas lideranças durassem menos de um ano e, em alguns casos, apenas dias.
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A história da Argentina manchou-se de sangue durante a ditadura militar de 1976-1983, período que ficou conhecido como "Guerra Suja", com a perseguição, tortura e assassinato de milhares de pessoas que se opuseram ao regime: entre mortos e desaparecidos, terão sido 30 mil. A imagem da Igreja Católica ficou ensombrada - uma mágoa que, para muitos fiéis argentinos e até de outras nacionalidades, ainda se mantém - pela colaboração de membros do clero com os militares. Mas o contrário também sucedeu: vários padres foram mortos pelo regime do general Jorge Rafael Videla e os seus sucessores, Roberto Eduardo Viola, Leopoldo Galtieri e Reynaldo Bignone.
Só para se ter uma ideia da gravidade do envolvimento do clero, citemos o caso do padre Christian Von Wernich, que foi condenado a prisão perpétua por um tribunal da Argentina, em 2007, por crimes contra a humanidade. O antigo capelão da Polícia de Buenos Aires esteve envolvido, direta ou indiretamente, em sete assassinatos, 42 raptos e 31 casos de tortura.
Segundo os testemunhos que sobreviventes e familiares deixaram ao longo do julgamento, que durou apenas três meses, Von Wernich ouvia as confissões nos centros de tortura e passava a informação aos militares repressores. Dois anos depois da sentença condenatória, um tribunal superior recusou os motivos apresentados pela defesa do antigo capelão em sede de recurso, confirmando a prisão perpétua.
As autoridades eclesiásticas mantiveram-se em silêncio durante todo o processo. Só no dia da condenação é que foi emitido um comunicado, que apelava à reconciliação dos cidadãos argentinos, pedindo-lhes que pusessem de lado o ódio e o rancor.
Em 2006, antes do julgamento de Christian Von Wernich, a Conferência Episcopal Argentina negou algumas informações veiculadas pela Imprensa, segundo as quais o general Reynaldo Bignone (o último ditador argentino, que viria a falecer em 2018, aos 90 anos) assegurou que alguns bispos aprovaram os atos da máquina de tortura sobre desaparecidos e presos políticos. Num comunicado, a instituição afirmou que isso era "absolutamente falso e inaceitável".
A reconciliação
Já depois de a Igreja Católica ter escolhido como líder um cardeal de Buenos Aires, a Conferência Episcopal Argentina tentou, em 2017, fazer as pazes com o passado, organizando uma assembleia plenária para a qual convidou vítimas da ditadura. Sob o mote da "reconciliação", a iniciativa foi duramente criticada, pois os visados diziam que tal não era possível, desde logo porque os militares não tinham pedido perdão pelos crimes nem tinham explicado onde estavam os milhares de desaparecidos.
Na sequência da ordem dada por Francisco em 2015, no sentido da abertura dos arquivos da Igreja, tanto na Argentina como no Vaticano, relativos ao período da ditadura militar, a Conferência anunciou, em maio de 2017, que já estavam digitalizados três mil cartas e outros documentos para consulta, por parte das vítimas e familiares diretos dos desaparecidos.
O próprio Papa esteve sob suspeita. Muitos jesuítas e algumas organizações de direitos humanos acusaram-no de ter colaborado com a ditadura argentina no caso do sequestro, em março de 1976, dos sacerdotes Franz Jalics e Orlando Yorio. Francisco viria a negá-lo, dizendo, inclusivamente, que ajudou à libertação dos religiosos jesuítas, que aconteceu poucos meses depois da detenção. A seguir à eleição do Papa, Jalics fez um esclarecimento público, acabando com as dúvidas que ainda permaneciam. Numa declaração dada a conhecer no site da ordem jesuíta na Alemanha, Jalics escreveu: "Orlando Yorio e eu mesmo não fomos denunciados pelo padre Bergoglio", acrescentando: "É falso afirmar que a nossa detenção foi provocada pelo padre Bergoglio".
A Igreja também teve as suas baixas durante a "Guerra Suja". Numa notícia publicada pela agência Ecclesia em 2006, referia-se que terão sido mortos "cerca de uma centena de sacerdotes e religiosos" nesse período. Entre os que tombaram estão os protagonistas do "Massacre de S. Patrício", ocorrido em julho de 1976, na paróquia com o mesmo nome, em Buenos Aires. Cinco religiosos palotinos (três padres e dois seminaristas) foram encontrados na sala comunitária da paróquia cravejados de balas.
Um bispo, dois sacerdotes e um leigo foram beatificados em 2019 ao serem reconhecidos pela Santa Sé como mártires. Henrique Angelelli, a quem chamavam "bispo dos pobres", e três dos seus colaboradores - os padres Gabriel Longueville e Carlos de Dios Murias e, ainda, o agricultor Wenceslao Pedernera - foram assassinados em 1976.
Angelelli perdeu a vida num acidente de automóvel simulado. Murias, um jovem franciscano, foi levado por homens que se diziam polícias e, por não querer deixá-lo ir sozinho, Longueville acompanhou-o. Os corpos de ambos foram encontrados dois dias mais tarde, com sinais de tortura antes de serem fuzilados. Pedernera, organizador do Movimento Rural Católico, foi assassinado em casa por quatro homens mascarados.
Papa ajudado por psiquiatra
O Papa, que morreu na segunda-feira aos 88 anos, contou que recorreu a uma psiquiatra durante a ditadura, numa entrevista feita em 2019, no Vaticano, e divulgada postumamente.
A entrevista foi conduzida pelo jornalista argentino Nelson Castro, que trabalha para os canais 13 e Todo Noticias, de Buenos Aires, e que escreveu o livro “La salud de los papas” (A saúde dos papas).
“Foram tempos difíceis porque havia a ditadura, o problema do resgate de pessoas, as pessoas escondidas... Havia coisas que eu não sabia como lidar bem”, afirmou, também citado pela agência de notícias espanhola EFE.
Explicou que a psiquiatra o ajudou a “clarificar certas coisas” e a enfrentar certos medos que lhe surgiram.