Separatistas da Republika Srpska ressuscitam os fantasmas de uma história sangrenta e mal resolvida.
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Bósnia: Queremos nadar! Croácia: Não! O "meme" parodia o retalho territorial da Bósnia e Herzegovina e séculos de violências, de agressões e de retaliações, pelas mesmas dissidências insanáveis que causaram 102 mil mortos e milhões de refugiados durante a Guerra dos Balcãs e que, por estes tempos, agitam os espantalhos dessa primeira metade da década de 1990. A comunidade internacional alarma-se e a federação multiétnica dirigida desde Sarajevo debate-se nas aspirações separatistas da comunidade sérvia, cristã ortodoxa, e nos e incuráveis antagonismos étnicos e religiosos, com croatas, católicos, e bósnios, muçulmanos. Em outubro há eleições.
Eis um labirinto balcânico, que até tem marca portuguesa: a Republika Srpska, a República Sérvia da Bósnia e Herzegovina - não confundir com a República da Sérvia, embora esta, com capital em Belgrado, lhe alimente a cobiça separatista ou de integração na pátria - agrupa a comunidade sérvia refugiada dos massacres da Krajina e da Guerra dos Balcãs (1991-1995) e alojada na federação dirigida por Sarajevo; com capital em Banja Luka, a "Srpska" é uma região autónoma, soberana, com Governo e parlamento próprios, e cunha moeda e tudo, o marco convertível. Também têm eleições marcadas para 2 de outubro.
É neste quadro, sem mar nem praia que não seja por uma nesga para o Adriático - através do corredor de Neum, uma faixa de 25 quilómetros, muito relutantemente admitida pela Croácia -, e rasgada por todos os conflitos internos, que a federação da Bósnia e Herzegovina ressuscita os fantasmas da guerra que desmembrou a Jugoslávia. As eleições destinam-se a eleger os membros da presidência colegial tripartida (um sérvio, um bósnio e um croata), o parlamento central e os parlamentos das entidades que compõem a federação. Serão também eleitos os deputados das assembleias dos dez cantões que formam a federação.
Nacionalismos
Às urnas chegará também a insatisfação dos croatas da Herzegovina, que contestam as cotas de representação nas instituições do país. Bruxelas, Washington e o Alto Representante internacional, o alemão Christian Schmidt, supervisionam o cumprimento do acordo de paz de Dayton, assinado em 1995, mas o sufrágio poderá ficar comprometido pela insatisfação da comunidade croata (católica), que representa cerca de 15% dos 3,5 milhões de habitantes da federação, contra cerca de 46% de bósnios (muçulmanos) e perto de 35% de sérvios (ortodoxos). Entre outras queixas, os croatas denunciam o modelo eleitoral que permite aos bósnios influenciar a eleição do membro croata da presidência colegial.
As eleições também coincidem com o recrudescimento das ambições separatistas dos sérvios. O líder nacionalista Milorad Dodik, que dirige a comunidade há 15 anos, esticou a corda e retirou os representantes da "Srpska" das instituições centrais do país, desvinculou-se do exército, do poder judicial e do sistema fiscal central.
O parlamento de Banja Luka também aprovou uma polémica lei que declara a apropriação dos bens do Estado central incluídos no território da entidade sérvia, entretanto suspensa pelo alto-representante, Christian Schmidt, que recorreu aos "poderes especiais", herdados da conferência de Bona de 1997.
O alto-representante pode alterar ou impor leis e até demitir responsáveis políticos e outros membros eleitos ou designados pelos governos locais. Problema: Milorad Dodik, líder da "Srpska" e representante dos sérvios na presidência federal tripartida, assegura que não vai respeitar a decisão de Schmidt.
Alguns dados sobre os Balcãs
9-1-92
A Assembleia Sérvia da Bósnia proclama a criação da Republika Srpska e anuncia o projeto de integração do território no Estado Federal da Jugoslávia.
81,5%
A comunidade sérvia é amplamente maioritária entre os 1,5 milhões de habitantes da Republika Srpska. Os bósnios são 10% e os croatas constituem 0,9% da população.
À lupa
Massacre de Srebrenica
Em 2016, o TPI condenou o primeiro presidente da Srpska a 40 anos de prisão, por genocídio de seis mil muçulmanos. Em 2019, transitados os recursos, Radovan Karadzic foi condenado a prisão perpétua.
Diplomacia
A marca portuguesa nos Balcãs
Se guarda memória de intervenção da diplomacia portuguesa, foi por mero acaso da agenda política internacional. O próprio José Cutileiro (1934-2020) - que chefiou a missão portuguesa e rubricou o plano de paz batizado Carrington-Cutileiro, em co-autoria com o britânico Lord Carrington (1919-2018) - fazia questão de o verificar. O que sucedeu foi que Portugal apanhou em cheio com a crise dos Balcãs, quando assumiu pela primeira vez a presidência rotativa da então CEE, no primeiro semestre de 1992. O plano previa uma organização de partilha e descentralização, com benefício das comunidades. Inicialmente adotado por todas as partes, não demorou a ser denunciado pelos bósnios, que não aceitaram a repartição interétnica do país.
"Ninguém estava seguro em lado nenhum"
Jorge Monteiro Alves, ex-repórter do JN
O que recorda da Bósnia de 1992?
Cheguei no início do verão, cerca de 100 dias após o começo da guerra, e a recordação é de ter deparado com um cenário caótico. Estavam em curso combates muito violentos, com as forças sérvias, apoiadas por Belgrado, a tentarem esmagar as posições dos muçulmanos, especialmente Sarajevo, que estava sob cerco e era bombardeada diariamente. Para se ter uma ideia da ferocidade desses 100 primeiros dias, atente-se que se registaram mais de 80 mil mortos nesse período. Basta comparar com os quatro mil mortos na Ucrânia no mesmo período de tempo e ter em conta que a Bósnia tem uma população 15 vezes inferior à da Ucrânia.
Qual era o risco de passar além do rio Drina?
Posso só dar testemunho pessoal. Não obstante ter preparação militar e de já ter estado noutros cenários de guerra (designadamente na Krajina), estava longe de imaginar os riscos que comportava atravessar então o Drina e entrar na Bósnia. Quando ali me desloquei, estava-se na fase de combates mais violentos e ninguém estava seguro em lado algum, especialmente, como era o meu caso, que estava em Sarajevo, se estivesse numa área muçulmana. Os sérvios contavam com um grande número de franco-atiradores, parte deles recrutados a partir das prisões onde estavam encarcerados, e receberam 500 dólares por cada um dos 25 jornalistas estrangeiros que conseguiram abater.
Como avalia as ambições da Republika Srpska?
As feridas da guerra estão ainda muito presentes e levarão tempo a cicatrizar. Falar da Republika Srpska é a mesma coisa que falar da Sérvia. Em Belgrado, as correntes nacionalistas são ainda predominantes e não me surpreenderia se o conflito voltasse a reacender-se. O objetivo é claro: o separatismo dos sérvios da Bósnia e, a prazo, a realização de um referendo e a integração desses territórios na Sérvia, país que conta, sublinhe-se, com o total apoio de Moscovo. A escola é a mesma.
A Bósnia continua a ter solução diplomática?
Poderá haver uma solução diplomática, mas creio que será muito difícil de alcançar. O mais natural será que a Republika Srpska passe a integrar a Sérvia. Não me surpreenderia que os croatas bósnios, que integram a federação mas são maioritários na Herzegovina, seguissem o mesmo caminho e que a Herzegovina fosse integrada na Croácia.