Lula da Silva, eleito com 51% dos votos, vai enfrentar várias dificuldades internas. Da economia ao meio ambiente, o novo líder do Brasil deverá começar já a delinear metas.
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Lula da Silva toma posse como presidente do Brasil a 1 de janeiro de 2023. O incumbente ainda não assumiu a derrota, mas o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) confirmou a vitória do candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), que regressa ao Palácio do Planalto 12 anos depois da segunda passagem pela sede da presidência brasileira.
Sete meses antes das eleições, em março, o instituto Datafolha divulgou uma sondagem que dava conta das maiores preocupações da população do Brasil com o futuro do país. As dificuldades apontadas pelos cidadãos são agora os desafios internos que Lula da Silva terá de enfrentar nos próximos quatro anos.
Segundo aquela sondagem, divulgada pelo jornal "Folha de S. Paulo", as grandes inquietudes dos brasileiros centram-se na área da saúde (22%), violência e economia (15%) e desemprego (12%).
Economia
O atual cenário económico no Brasil é uma das grandes dificuldades que Lula da Silva terá de entestar, uma vez que o país se encontra mergulhado numa espiral de estagflação (recessão associada a inflação alta) sem fim à vista.
"Este fenómeno é um dos principais problemas que o presidente terá que enfrentar", alertou o economista Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), à BBC Brasil, ainda antes da realização da primeira volta do escrutínio. Mas reduzir a taxa de desemprego e aumentar as medidas de proteção social também são tarefas urgentes.
O Brasil terminou o ano de 2021 com uma inflação de 10,06%, a maior taxa acumulada desde 2015, quando o índice foi de 10,67%. Para este ano, o Banco Central brasileiro estabeleceu uma meta de inflação de 3,50% com margem de tolerância de 1,5 pontos percentuais, apesar de já ter admitido que não deverá ser cumprida. Segundo as estimativas dos economistas do mercado financeiro divulgadas pelo Banco Central, 2022 irá terminar com uma taxa de inflação de 5,71%, enquanto para 2023 prevê uma inflação de 5%.
No que diz respeito à taxa de desemprego, esta encontra-se nos 8,7%, o que espelha uma queda, segundo dados oficiais divulgados na última quinta-feira, três dias antes da segunda volta das eleições presidenciais. Os números mostram uma recuperação após o colapso causado pela pandemia, quando o desemprego atingiu um pico de 14,9% no primeiro trimestre de 2021. Contudo, cerca de 9,5 milhões de pessoas continuam sem trabalho, o que empurra uma grande fatia da população para uma situação de pobreza extrema da qual será difícil de sair.
Além do novo líder brasileiro se deparar com um contexto económico caótico, acresce o facto de ter pouco espaço de manobra para proceder a grandes alterações no plano financeiro, já que a maior parte dos fundos públicos apenas podem ser alocados com aprovação do Congresso.
Fome
Uma estimativa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional indicou, no início deste ano, que 33,1 milhões de pessoas estavam a passar fome no Brasil, um aumento drástico em relação a 2020, quando uma pesquisa mostrou que 19 milhões de brasileiros se encontravam nesta situação.
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Em julho, o Brasil voltou ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, sigla em inglês), pela primeira vez desde 2015, o que significa que está entre os países do Mundo que têm mais de 2,5% da população a enfrentar uma falha crónica de alimentos.
Os dados da ONU revelam ainda que 61 milhões de brasileiros, cerca de 28% da população total, revelaram ter dificuldade para se alimentar entre 2019 e 2021, tendo em conta que a percentagem de indivíduos que disseram não ter a certeza de quando iriam fazer a próxima refeição estava acima da média mundial.
"A pandemia não é a maior culpada pelo Brasil estar de regresso a estes números extremamente altos de pessoas com fome. O Brasil é um dos países com mais desigualdades do Mundo", salientou Daniel Balaban, diretor do Programa de Alimentos da ONU no Brasil, na altura em que os dados foram apresentados.
Para fazer face a este problema, que ensombra uma grande parte da sociedade brasileira, Lula da Silva prometeu manter o apoio de 600 reais (cerca de 133 euros) à população mais carente. O pacote de assistência é válido até ao final de 2022 e terá de ser aprovado pelo Congresso, após a tomada de posse.
Violência
O Brasil é um dos países com a maior taxa absoluta de homicídios do Mundo, mas, segundo o Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (IPEA), os números relativos a este tipo de crime têm descido nos últimos anos, o que, mesmo assim, não diminuiu os temores dos brasileiros em relação ao tema, tendo em conta da sondagem realizada pelo Datafolha, publicada em março deste ano.
De acordo com um levantamento feito pelo portal G1, nos primeiros seis meses de 2022 foram registados cerca de 20 mil homicídios em todo o país, o que representa uma queda de 5% em relação ao período homólogo do ano passado. Ainda assim, o número é extremamente elevado, já que, feitas as contas, mais de 100 brasileiros foram assassinados por dia.
Ainda que o número de homicídios esteja em queda, a violência prevalece no país e outros tipos de crime são recorrentes. No campo da política, por exemplo, revela uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, os casos de violência cresceram 335% nos últimos três anos. Foram identificados 214 registos até ao primeiro semestre de 2022, enquanto o país teve 47 casos no mesmo período de 2019, ano em que o estudo começou.
A violência contra as mulheres também continua a ser um foco de grande preocupação. Dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em março deste ano indicam uma ligeira queda (2,4%) no número de feminicídios em 2021 em relação ao ano anterior. No entanto, 1319 mulheres foram vítimas desse crime no ano passado.
Além disso, houve um aumento de 3,7% no número de violações contra mulheres em 2021, em comparação com 2020. No ano passado, foram registados 56.098 casos, o que significa que, no Brasil, ocorrem quase seis abusos sexuais por hora.
Renato Sérgio de Lima, investigador do FBSP, alerta, em declarações à BBC Brasil, que, nos últimos anos, surgiu ainda a necessidade de conter o avanço de fações criminosas e das milícias, que, segundo o próprio, estão a inserir-se cada vez mais nos setores da economia e a ganhar força económica e política.
Sistema de saúde
A saúde lidera a lista das principais preocupações dos brasileiros, segundo a sondagem do Datafolha divulgada em março, e deverá representar uma das maiores dores de cabeça de Lula da Silva.
Um estudo, recentemente publicado na revista científica "Lancet", mostra que, entre 2019 e 2020, houve uma redução de 25% na quantidade de procedimentos médicos no Sistema Único de Saúde (SUS).
Por outro lado, dados compilados pela UNICEF mostram que o acompanhamento contra a tríplice viral, que inclui o sarampo, papeira e rubéola, caiu de 93,1%, em 2019 para 71,49% em 2021, sendo que o da poliomielite caiu de 84,2%, em 2019 para 67,7%, em 2021.
Armando Massuda, médico e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), acredita que alguns dos problemas a serem domados na área de saúde são, em parte, derivados das consequências causadas pela pandemia de covid-19.
O médico realça que a pandemia gerou uma redução drástica na capacidade do SUS de lidar com outras questões de saúde pública, já que milhares de pessoas deixaram de fazer consultas, cirurgias simples ou dirigirem-se a estabelecimentos de saúde para assuntos urgentes.
Na avaliação do especialista, os três principais desafios passam por recuperar o padrão de atendimento do SUS, lidar com a procura que foi reprimida pela pandemia, enfrentar o possível surgimento de epidemias e ampliar as fontes de recursos destinadas para a saúde pública.
Proteção da Amazónia
Só o Brasil possui 60% da Amazónia, porém, 21% da porção brasileira está destruída devido à desflorestação ilegal impulsionada pelo agronegócio.
De agosto de 2021 a julho de 2022, 10.781 quilómetros quadrados de floresta foram destruídos. Este é o valor mais alto dos últimos 15 anos e encaminha 2022 para ser o quarto ano consecutivo com um nível de desflorestação superior a 10.000 quilómetros quadrados - uma sequência que já não era observada desde 2008.
À BBC, Suely Araújo, investigadora do Observatório do Clima, enumerou os principais desafios do Brasil na área ambiental: reduzir as taxas de desmatamento ilegal em todos os biomas, fortalecer e reestruturar os órgãos de proteção ambiental e acelerar o processo de transição para uma nova matriz energética mais limpa e menos dependente dos combustíveis fósseis.
Durante a campanha eleitoral, Lula da Silva comprometeu-se a reconstruir instituições ambientais que se desmoronaram nos últimos quatro anos.
Falta de confiança nas instituições
A confiança dos brasileiros nas instituições públicas tem vindo a sofrer uma queda generalizada, revelou uma sondagem do Datafolha, publicada pelo jornal "Folha de S. Paulo" no fim do ano passado.
A Presidência da República, exercida por Jair Bolsonaro, sofria de 31% de desconfiança por parte população em julho de 2019, quando ocorreu o último levantamento da Datafolha sobre o tema. Mas, dois anos depois, aquando a realização da mais recente sondagem, 50% responderam que não depositavam esperança na principal instituição de poder político.
O Congresso Nacional também viu a descrença da população crescer de 45% para 49%. A percentagem dos que confiam muito no Congresso caiu de 7% para 4%, e os de que confiam pouco manteve-se estável em 46%.
A falta de crédito no Supremo Tribunal Federal, alvo de constantes ataques por parte de Jair Bolsonaro, também subiu de 33% para 38%.
No que toca às Forças Armadas, que tradicionalmente são a instituição com o maior grau de confiança da população e têm grande identidade com o Governo de Bolsonaro, também sofreram uma queda. Em julho 2019, 19% não confiavam nas Forças Armadas, e agora a percentagem é de 22%.
Cabe ao novo líder mostrar que as instituições de poder público não são inimigas da população, mas que existem para manter a estabilidade do país.