Miguel Borba de Sá, especialista em política brasileira da Universidade de Coimbra, considera que os dois meses em que Bolsonaro ainda vai estar no poder serão "muito turbulentos". O investigador antecipa que a liderança de Lula da Silva será difícil desde o primeiro dia em que chegar ao Palácio do Planalto.
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O silêncio de Bolsonaro após a derrota já seria de esperar?
A meu ver este silêncio do presidente mostra que alguma reunião de emergência aconteceu, com o intuito de traçar uma estratégia de contenção de danos e projeção do futuro político de Bolsonaro e do seu movimento. Porque a verdade é que Lula só teve mais dois milhões de votos do que Bolsonaro, o que num colégio eleitoral tão amplo é muito pouco. Em termos políticos, pode ser considerado um empate técnico, ou até mesmo, uma leve vitória da extrema-direita no Brasil, sobretudo se olharmos para as eleições de governadores e para o Congresso. Claro que é um banho de água fria do lado do Bolsonaro, mas certamente existe um património político que surge de Bolsonaro que pode ser herdado, portanto imagino que uma estratégia possa estar a ser traçada do ponto de vista político. A nível mais operacional, esta segunda-feira, ocorreram alguns cortes das estradas mais importantes do país. Conversei com pessoas que moram no Rio de Janeiro e algumas estão bastante preocupadas com o que se irá seguir.
A derrota do presidente pode impulsionar um caos político que levará a uma guerra civil?
Acho que ainda não estamos nesse ponto. Estamos num momento em que é possível que se crie uma muita confusão, e isso já está a acontecer. São atos que não podem mais ser classificados como isolados, porque representam situações de violência pessoal e que são estimulados por um discurso de ódio e de não-aceitação de resultados. Para já, penso que não teremos nenhuma sinalização nesse sentido, o que não significa que tal não aconteça nas próximas semanas, meses e até mesmo durante o mandato de Lula da Silva. Há um grande sentimento de divisão e esse tipo de atos de violência podem gerar um grau de confusão cada vez maior e as consequências são difíceis de prever. Eu acho que atualmente não existem condições políticas para um golpe de estado, tanto no plano interno como externo. Mesmo no Brasil, muitos dos aliados de Bolsonaro já aceitaram a derrota mesmo antes da reação do presidente. Estamos a falar de ministros importantes e representantes do Congresso.
Como serão os próximos dois meses até Lula da Silva tomar posse como presidente?
Os próximos dois meses vão ser muito turbulentos. Não haverá uma transição fácil, não devemos esperar uma transferência de poder em harmonia até Lula tomar posse. Estamos muito mais próximos de um cenário de queima de documentos e desorganização propositada de ministérios do que de uma transição normal, como aconteceu em outras situações pós-eleições.
Com a saída de Bolsonaro será mais fácil a justiça detetar eventuais ilegalidades cometidas nos últimos quatro anos?
Imagino que sim. Ao contrário de muitos analistas, considero que isso é uma fragilidade da democracia e das instituições brasileiras. Porque ficam sempre à mercê da maré do jogo político para avançar com processos judiciais. Jair Bolsonaro deve ser responsabilizado pelos atos políticos e não só por eventuais ilegalidades de foro privado.
O que se pode esperar da liderança de Lula da Silva?
Vamos experimentar uma liderança de Lula em que, se por um lado, vão existir semelhanças com as lideranças anteriores, por outro, espera-se uma grande pressão devido ao atual cenário. Lula vai estar com a faca no pescoço desde o primeiro dia. Boa parte das suas alianças à Direita exigiram um determinado programa económico que não alcança um consenso nas alianças mais à Esquerda. Então será um Governo em disputa, no qual o Lula terá de usar, mais do que nunca, a sua capacidade de negociação e mediação, algo em que sempre foi muito bom. No entanto, Lula já é um político de idade avançada, não sei se terá as mesmas condições pessoais e políticas para manter a estabilidade, sobretudo nas questões económicas. A acrescentar a isso, não podemos esperar calma nos próximos anos, até porque o núcleo duro de Bolsonaro não vai ficar adormecido.
A polarização política que se criou nestas eleições poderá estimular um aumento da violência no país?
Inevitavelmente, sim. O mais assustador neste cenário é a participação das próprias forças policiais na produção de violência. A incerteza quanto à cadeia de comando é um dos fatores de maior preocupação que podemos ter neste momento.
