A Evergrande, um gigantesco grupo económico chinês ancorado na construção civil, parece estar a sofrer do problema de Ícaro. Subiu demasiado alto para chegar ao sol e as asas, afinal de cera, começaram derreter. A queda, que parece iminente, ameaça a banca chinesa e, por arrasto, a economia local e mundial.
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A associação ao Lehman Brothers, que precipitou a crise financeira, e depois económica e social de 2008 e arrastou milhões de pessoas para a pobreza durante os anos que se seguiram, não surge de ânimo leve. Nem descontextualizada. A dívida da Evergrande ameaça fazer jus ao nome, lido em inglês e português: sempre (ever) e grande - são 260 mil milhões de euros, mais 60 mil milhões do que toda a riqueza produzida por Portugal em 2020, traduzida pelo indicador Produto Interno Bruto (PIB), que se situou em 202,4 mil milhões de euros.
A Evergrande emprega 200 mil pessoas e orgulha-se de ter mais de 1300 projetos em 280 cidades em toda a China. Um gigante que gera 3,8 milhões de empregos indiretos, um número aproximado de toda a população empregada em Portugal, que era de 4,7 milhões de pessoas, em 2020, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística português.
Ao anunciar, na semana passada, que estava com dificuldades e poderia falhar dois pagamentos, que vencem amanhã, quinta-feira, a Evergrande fez tremer a economia mundial, a vários níveis.
"A crise de liquidez da Evergrande, a iminente reestruturação da dívida e os riscos de contágio reverberaram nos mercados nos últimos dias, azedando o sentimento de risco global", observaram os analistas da "Société Général". O receio de uma crise financeira na China mexeu com a cotação do petróleo e abanou a bolsa de Nova Iorque que encerrou em acentuada baixa na segunda-feira, naquela que foi uma das piores sessões do ano em Wall Street.
"Os impactos de um grande calote de Evergrande seriam notáveis"
A Evergrande "pode infligir danos duradouros às condições de crédito e à atividade económica chinesa", estimam os analistas de mercado da "Société Générale", para quem as repercussões de uma possível falta de pagamento "provavelmente contribuirão para a desaceleração económica em curso na China, que ancora o crescimento global e a inflação e prejudica os preços dos bens de consumo".
Mattie Bekink, diretora de Informação Corporativa da revista "The Economist" para a China é cautelosa. "Esperamos que o governo intervenha no caso de Evergrande, que não permitia que o incumprimento da empresa se espalhe pelo sistema bancário", disse. "Os impactos de um grande calote de Evergrande seriam notáveis", alertou aquela especialista no mercado chinês.
Para Karl Haeling, analista do Landesbank Baden-Württemberg, "o risco de contágio só existe se as autoridades chinesas deixarem a Evergrande cair totalmente na falência, mas isto não faz sentido para a China, dado os problemas internos e os cortes de emprego que isso ia causar".
O acionistas estão cautelosos há meses: as ações caíram 80% este ano. Na semana passada, as agências Fitch e a Moody's baixaram as classificações de crédito da Evergrande, citando os problemas de liquidez.
"Vemos algum tipo de incumprimento como provável", escreveu a Fitch, em nota enviada na na terça-feira aos clientes. Apesar de baixar a notação da Evergrande, a Moody's acredita que os problemas da empresa podem ficar intramuros.
"Não acho que o colapso de Evergrande e os problemas financeiros das empresas imobiliárias chinesas de forma mais ampla terão efeitos na economia ou nos mercados dos EUA", disse Mark Zandi, economista-chefe da Moody's em declarações "CNN Business", alinhando com a fileira daqueles que acham que o "Lehman chinês" não terá o efeito "tsunami" que teve o já extinto gigante bancário norte-americano.
"Não penso que a situação atinja o nível do Lehman Brothers
O Lehman Brothers era uma das instituições financeiras mais prestigiadas de Wall Street, que sucumbiu aos créditos imobiliários sem qualidade ou de qualidade fraca, os designados "subprime". A falência precipitou a pior crise financeira desde 1929.
"Não penso que a situação atinja o nível do Lehman Brothers", estimou Kelvin Wong, analista da CMC Markets, que prefere falar das "repercussões negativas sobre o resto do planeta" de uma crise na china. Uma preocupação partilhada pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE).
"As autoridades chinesas têm a capacidade orçamental e monetária para amortecer o choque", argumentou a economista-chefe da OCDE, Laurence Boone, considerando que as implicações para o crescimento da economia internacional são mais preocupantes que o cenário de uma tempestade bolsista mundial.
"Trata-se de uma empresa chinesa, cujas atividades estão sobretudo concentradas na China", arrolou Jen Psaki, porta-voz do presidente dos EUA, Joe Biden. "Dito isto, acompanhamos sempre os mercados mundiais, incluindo a avaliação de todos os riscos para a economia dos EUA e estamos prontos a reagir de maneira apropriada, se necessária", acrescentou.
"Não estou convencido de que a China, um país comunista, intervencionista, deixe cair a Evergrande"
Tem a palavra o Governo chinês, que poderá agir discretamente para salvar a empresa. O imobiliário é um motor essencial da economia da China. Representa cerca de um quarto do produto interno bruto e desempenhou um papel determinante na recuperação depois da pandemia. Qualquer falência de um conglomerado destes, que representa 2,2% do PIB chinês, teria imensas repercussões.
A Evergrande é uma empresa privada e Pequim pode não se sentir obrigada a ajudar, passando a mensagem "ninguém é demasiado grande para cair", mas a maior parte dos peritos concordam que o Estado não quer que os chineses sejam lesados.
"Não estou convencido de que a China, um país comunista, intervencionista, deixe cair a Evergrande", argumentou Gregori Volokhine, da Meeschaert Financial Services. Larry Ong, da SinoInsider, estima que o "melhor cenário" é o de as autoridades "encontrarem um modo de impedir a Evergrande de declarar falência, dar aos credores a esperança de obterem qualquer coisa e evitar que a situação cause problemas sociais".
Outro cenário possível é o de uma reestruturação que permitiria às autoridades assumir o controlo de algumas partes da empresa, enquanto o ramo dos investimentos cessaria atividade.
A tarefa anuncia-se imensa, à imagem da empresa, um conglomerado que nasceu na construção civil e agora está também presente no mercado da água mineral e sonha abrir parques de diversão "ainda maiores" do que a Disney, bem como investir no turismo, Internet e seguros e saúde. O grupo é dono de um clube de futebol, o Guangzhou FC (ex-Guangzhou Evergrande), cujo estádio, em forma de flor de lótus, custou cerca de 1,5 mil milhões de euros.