"Filho" de uma avó que vendia vinagre. A vida agridoce do homem que faz tremer o mundo
A vida de Xu Jiayin é um retrato fiel dos últimos 50 anos da China. O percurso do fundador da Evergrande condensa meio século de história, do país coberto pelo manto da pobreza à potência incontornável da economia mundial.
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A vida de Xu Jiayin e o desenvolvimento da China correm em paralelo na mesma história de sucesso. O empresário fez-se milionário, como tantos outros no país, que beneficiou do empreendedorismo de homens como fundador da Evergrande, a empresa que agora dá dores de cabeça à finança e ameaça a economia local e mundial.
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Xu Jiayin, também conhecido como Hui Ka Yan, em língua cantonesa, chegou a ser o homem mais rico da China. Em 2017, contas da revista "Forbes", o fundador da Evergrande tinha um património avaliado em cerca de 40 mil milhões de euros, quatro vezes mais que a fortuna somada dos 10 mais ricos de Portugal, que se ficava por cerca de 10 mil milhões.
Sensivelmente o que "vale" atualmente Xu Jiayin, numa altura em que a empresa que fundou em 1996 acumula vários meses de perdas em bolsa. Desde o início do ano, a Evergrande perdeu 84% do valor bolsista e deixou o mundo em suspenso, especialmente o financeiro, que teme um "Lehman chinês", caso a empresa soçobre ao peso da dívida - 260 mil milhões de euros, mais do que um ano inteiro da riqueza produzida em Portugal.
Da pobreza à riqueza, numa vida entre revoluções sangrentas
O caminho descendente da Evergrande levou de enxurrada três quartos da fortuna de Xu Jiayin. Amante de iates e outros luxos, o empresário fez um longo caminho, marcado por revoluções, desde os campos pobres de uma aldeia da província de Henan até ao topo do Mundo.
Xu Jiayin nasceu em 1958, no primeiro ano do "Grande Salto em Frente", uma campanha idealizada pelo histórico líder Mao Tsé-Tung. Com o objetivo de fazer da China uma nação desenvolvida e igualitária, o programa, que terminou em 1962, promoveu uma reforma agrária forçada, na qual germinou a Grande Fome Chinesa, que terá custado a vida a cerca de 45 milhões de pessoas, segundo estimativas feitas para o jornal "Público" pelo historiador britânico Frank Dikottër, em 2010.
Quando Dikottër fez estas declarações, a Evergrande era já uma empresa cotada na Bolsa de Hong Kong, onde tinha sido admitida em 2009. Xu estava já sentado no foguetão dos milionários, a caminho da estratosfera da riqueza, levando na bagagem da memória as dificuldades dos primeiros anos de vida.
A mãe morreu pouco depois do parto. Xu ficou aos cuidados da avó, uma mulher que "era íntima da pobreza", quando o pai, um ex-militar da guerra sino-japonesa de 1930-40, deixou os campos e a pobreza de Henan para arranjar um emprego num armazém de uma das muitas fábricas que o regime de Mao procurava estimular para acelerar o crescimento do país.
Xu ficou para trás, duplamente vítima do "Grande Salto em Frente", que secou campos e atirou pais, como o dele, para longe, para as fábricas da miragem de uma vida melhor. Deixado no regaço de uma avó que vendia vinagre para sobreviver, enganavam a fome com batata doce cozida ao vapor e pão. "Queria deixar o campo assim que fosse possível, encontrar trabalho na cidade e comer melhor", recordou o milionário, citado pelo jornal espanhol "El País".
Abandonou a escola e só regressou após o fim da "Revolução Cultural"
A história de Xu continuou à bolina das convulsões no país. O fundador da Evergrande abandonou os estudos após terminar o ensino médio, durante a "Revolução Cultural". Liderada por Mao Tsé-Tung, durou de 1966 e 1976 e tinha como objetivo expurgar do comunismo chinês as influências do capitalismo. Um regresso ao maoismo mais duro que terá causado cerca de 20 milhões de mortos, em resultado de massacres, como o "Agosto Vermelho", em Pequim, e perseguições a vários milhões de cidadãos.
Nesse período, Xu trabalhou numa fábrica de cimento. Voltou aos estudos no fim da "Revolução Cultural" e ingressou na Universidade de Ciência e Tecnologia de Wuhan, em 1978. No pós-maoismo, nos primeiros anos de abertura económica da China, trabalhou cerca de 10 anos em empresas metalúrgicas. Foi chefe de departamento e chegou a diretor estatal e uma siderurgia.
Demitiu-se em 1992 e rumou a Shenzhen, hoje o "centro comercial" da China, onde tudo se fabrica e tudo se vende, zona também conhecida como "a Silicon Valley" chinesa, sede das maiores empresas tecnológicas do "Império do Meio".
No início dos anos de 1990, Shenzhen era apenas um povoado de pescadores, encostado ao território autonómico de Hong Kong, administrado pelo Reino Unido até 1997, quando foi feita a transição de poder. Escolhida para ser a primeira Zona Económica Especial, uma área de testes das fórmulas do capitalismo para fomentar o desenvolvimento económico, a cidade transformou-se no "Eldorado" chinês.
Ali nasceu a Evergrande, em 1996, a reboque do crescimento imobiliário da China. Xu começou por vender apartamentos pequenos mas depressa percebeu que a procura maior, e mais lucrativa, estava no mercado das moradias.
Ser proprietário era condição fundamental para os homens chineses poderem pensar em casar, por isso a venda de casas e apartamentos explodiu na China. O negócio era atrativo, crescia a duas pernas, e muitos investidores apostaram na compra de um segundo, terceiro ou até quarto imóvel, ganhando milhões de yuans.
A reboque deste imobiliário a jato, a Evergrande subiu ao céu, expandiu-se por todo o país e orgulha-se de ter mais de 1300 projetos em 280 cidades na China.
Um império de ferro, tijolo e cimentado nas ligações políticas
O império construído por Xu não assentou apenas em ferro e tijolo. O betão que uniu tudo isto foi habilmente urdido pelo empresário, que cimentou uma estreita relação com o vice-presidente da China nos primeiros anos do século XXI, Zheng Qinghong, segundo o "Finantial Times", que terá ajudado a aplanar a estrada do sucesso.
As ligações à política pareciam firmes. Em 2018 participou no congresso do Partido Comunista Chinês em que o presidente Xi Jinping aboliu os limites formais à reeleição, abrindo as portas à hipótese de se manter no poder pelo tempo que desejar.
Na ocasião, Xu elogiou a liderança chinesa, num discurso em autorretrato. "Ao longo dos últimos trinta anos, as empresas privadas na China puderam começar de baixo e transformar-se de pequenas em grandes, de fracas em fortes".
O Governo que deu foi o mesmo que tirou. Em 2020, a China tomou medidas para obrigar os promotores imobiliários a reduzir o endividamento. Ficaram proibidos de vender antes do fim da construção, medida que afetou fortemente o modelo económico da Evergrande, que assentava no endividamento para se expandir, pagando empréstimos e juros com a venda de habitações ainda em planta.