Do palhaço ao ex-ator porno: no terreno eleitoral brasileiro chora-se de tanto rir
Num país com um discurso político incomparavelmente mais solto (para o bem e para o mal) e onde as figuras se sobrepõem inequivocamente aos partidos, é muito fértil o chão do humor. As paródias de campanha pululam nas redes sociais, ridículas para uns, geniais para outros. Mais do que estratégias, atos genuínos de um povo.
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"Sou de origem pobre, preto e, como vocês, sempre trabalhei duro." A apresentação política, aparentemente inofensiva, revela apenas um dos muitos trocadilhos sexuais usados na campanha eleitoral de Clóvis dos Santos, conhecido como Kid Bengala.
O ex-ator de filmes pornográficos vai concorrer pelo União Brasil ao Congresso e promete "entrar com tudo em Brasília". "Vou meter o pau em deputado corrupto", garante, todo ele alegria, nos vídeos promocionais, onde a canção de resistência italiana "Bella Ciao" surge, claro, também ela adaptada: "vai dar pau, vai dar pau, vai dar pau pau pau".
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O tom é o mais divertido possível, mas o assunto é sério. No domingo, dia 2 de outubro, o Brasil vai eleger o próximo presidente da República, mas nos bastidores desta eleição há um sem número de escolhas: serão eleitos governadores de todos os estados, senadores, centenas de deputados federais e centenas de parlamentares que integrarão as assembleias estaduais. Mais do que nas campanhas de primeira linha, é nas apresentações dos pequenos candidatos das regiões suburbanas que se revelam, exuberantes mas autênticas, as singularidades do povo brasileiro.
E há pano para mangas. O candidato federal Dário, por exemplo, a representar Minas Gerais, dança, sem medos, a favor da legalização do consumo de canábis. Esse é, aliás, o grande (quiçá único) objetivo da campanha. "Boi, bala e Bíblia, isto só nos envergonha, agora queremos ver é a bancada da maconha", diz o refrão da paródia, inicialmente publicada no Tik Tok mas que viralizou rapidamente nas restantes redes sociais. Vestido de verde, o candidato do Partido Socialismo e Liberdade (Psol) não falha a coreografia, defendendo que "crime é proibir um remédio natural".
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Argumentos à parte, o segredo é só um: contextualizar. "No nosso entendimento, são coisas um pouco chocantes. Na nossa cultura, uma candidatura como a do Dário seria ridicularizada, mas ele está a fazer aquilo porque efetivamente quer ser eleito e acha que, assim, conseguirá o voto dos maconheiros, como ele diz", referiu Luís António Santos, professor de Ciências da Comunicação na Universidade do Minho e Diretor-adjunto do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade.
É preciso recordar, acrescentou o investigador, que o Brasil tem "uma dimensão geográfica e sociodemográfica muito especial". "É um país em que as taxas de analfabetismo ainda são muito significativas, a pertença a comunidades religiosas dita ou não o voto e, em determinadas zonas, existe uma relação de dependência pouco saudável entre as pessoas que gerem as localidades e os eleitores". Não será, portanto, de estranhar que, nos subúrbios das grandes cidades, apareçam "estas mensagens mais... caricatas".
"Todos nos lembramos da eleição de um comediante, o Tiririca, que não dizia absolutamente nada nos seus spots de promoção, não se comprometia com coisa nenhuma, não tinha qualquer ideia política, mas foi eleito", recordou o docente. E por falar em Tiririca, o deputado e ex-palhaço, já bem conhecido do público brasileiro, está na corrida, pelo Partido Liberal (PL), a um quarto mandato por São Paulo no Congresso. "Estou aqui para mostrar uma coisa que vocês nunca viram na televisão brasileira", garante, enquanto saltita, já ofegante.
"Sabe o que é isso? Um deputado em exercício! Vote no Tiririca", atira, num perfil repleto de vídeos nos quais pouco mais faz além de dançar, com roupa colorida ou só de calções. "Tiririca, o melhor remédio para a política", garante o também cantor e compositor, chamado Francisco Silva, que, em 2010, foi o deputado federal mais votado do Brasil, com um milhão e trezentos mil votos.
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Um caso que se explica, uma vez mais, com uma particularidade do sistema político brasileiro. Lá, muito mais do que em Portugal, por exemplo, "a fidelidade das pessoas é às figuras, aos indivíduos, não tanto às forças políticas". "Num cenário destes, é natural que aquilo que eu uso para vender seja a minha individualidade", explicou Luís António Santos.
Estes candidatos jogam o jogo no terreno que têm
É neste "caldo", em que "é permitido ao discurso político ter outra largura e em que as individualidades são muito mais importantes do que as forças políticas" que surgem essas mensagens fora da caixa.
"Os candidatos, que apostam na exuberância e num discurso deslocado do que seria o entendimento de um discurso político, jogam o jogo no terreno que têm. O chão ali é aquele", constatou.
"Se isto ajuda a promover a ideia da política como uma atividade nobre? Eu acho que não", defendeu, realçando que mesmo o discurso político dos grandes candidatos à Presidência da República é pobre. "O nível daquele debate da semana passada, que foi transmitido na CNN e em que não esteve presente o Lula, foi muito pobre. O que eles fazem é atacar-se uns aos outros. É muito difícil perceber as políticas de cada um".
Portanto, os candidatos mais pequenos "governam-se com os meios que têm". "Lutam com as armas que têm, que são muito poucas", ressalvou. Com a exceção, claro está, do Taxista Samurai, o ninja de Pernambuco que, aos 64 anos, tenta conquistar eleitores pela destreza com que manobra o seu "nunchaku", arma com duas hastes ligadas por uma corda ou corrente.
Taxista há mais de quatro décadas, Severino Sobrinho promete "bater de frente" com os "mentirosos", tirando partido das aulas de karaté e kung fu que teve na juventude, mas sobretudo dos ensinamentos do grande mestre: Bruce Lee.
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Ainda à boleia da sétima arte, dois belos exemplos: o do Wolverine do TikTok, candidato a deputado estadual no Rio de Janeiro, e o de Átila Nunes, que surge, nas redes sociais, no jato privado de James Bond, com o agente secreto a mostrar-se encantado com a candidatura do escritor e advogado.
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Há ainda espaço para Barack Obama (não o original, mas Henrique dos Anjos), Bin Laden Gari (Manoel dos Santos Irmão), Samuca (ainda se lembra do famoso ritmo Gangnam Style?) e João Poucas e Boas.
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O marketing não cria, aproveita o que existe
Numa panóplia tão vasta de candidaturas, os gritos de protesto são evidentes. Aliás, tal como recorda Luís António Santos, ainda que alguns candidatos queiram, naturalmente, "melhorar a sua vida pessoal, ter um salário", muitos deles entram na corrida em forma de protesto pelas forças instituídas.
De resto, as pinceladas de humor atribuídas às campanhas, já dependem das características individuais dos políticos: não são propriamente uma novidade nem uma criação de gabinete.
"O marketing reage, funciona, trabalha para o sistema que tem. Não cria, aproveita a cultura política que existe", concluiu o docente, reconhecendo que o segredo é, realmente, "conhecer muito bem o sistema e os eleitores". E no Brasil, diga-se, espaço não falta. Haja predisposição para rir.