Uma nova forma de organização democrática está a agitar o mapa político espanhol. A plataforma Podemos ameaça diretamente o tradicional bipartidarismo PP e PSOE. Este fim-de-semana, decorre em Madrid uma assembleia que pretende definir a futura estratégia eleitoral do projeto.
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"Estamos a assistir a uma segunda tomada da Bastilha, a outra Revolução Francesa", diz Judith Lorena, 37 anos, advogada. Não estamos em França, mas no Bairro de Salamanca, em Madrid. Decorria uma apresentação em setembro de mais um círculo do movimento que está a agitar a política espanhola, o Podemos. Os cinco eurodeputados eleitos nas recentes Europeias, realizadas apenas três meses depois da constituição do Podemos, causam a surpresa em Espanha. Mas as sondagens, realizadas após o ato eleitoral, extravasam o inesperado. Fazem soar os alarmes dentro dos dois partidos que dominam a cena política em Espanha, o PSOE e o Partido Popular.
A explicação para o rombo nas intenções de voto de PP e PSOE é o facto da "política já não estar ao serviço dos cidadãos, mas nas mãos dos poderes fáticos da economia", considera Judith. Uma sondagem publicada em Agosto no diário "El Mundo", atribuía ao movimento liderado por Pablo Iglesias 21,2%, o triplo do resultado das europeias, e 22,1% ao PSOE. Num estudo mais recente, divulgado no início deste mês no El País é o PP de Mariano Rajoy que se vê reduzido a 15,9% das intenções de voto, cerca de metade do resultado nas eleições gerais de 2011, seguido de perto pelo Podemos, que alcança 14,3%.
O orador mais aguardado da tarde é Íñigo Errejón, jovem politólogo que foi diretor de campanha nas eleições europeias. Os circunstantes, que o aguardam, são céleres em afirmar que o PSOE já não é a solução. "Deixei de ter convicção neles porque deixaram de cumprir o programa eleitoral [no governo de Zapatero] e fizeram as coisas em proveito próprio. É a isto que chamamos a casta", acrescenta a advogada.
Contra a "casta"
Esta linha de argumentação está em clara sintonia com as figuras mais relevantes do Podemos. A "casta" é, hoje, a expressão que se estabeleceu em força no debate político em Espanha. Nas ruas, nos programas de televisão, nos jornais e nas redes sociais. São os políticos que saem do governo e ingressam nos conselhos de administração das grandes empresas e dos bancos, em suma, os "mordomos do poder económico", como salientam os apoiantes do movimento.
Álvaro Soto Carmona, historiador e catedrático da Universidade Autónoma de Madrid, estabelece um paralelo entre a ascensão do Podemos e o papel dos socialistas espanhóis em 1982, quando Felipe González foi o rosto da mudança política em Espanha. "É uma resposta da população às políticas económicas frustrantes para fazer face à crise. Mas é também uma resposta da população ao crescente distanciamento dos partidos da classe política em relação às aspirações dos cidadãos".
O discurso de ataque à "casta" surgiu no seio da Universidade Complutense de Madrid, onde se reúne uma espécie de "think tank"formado por politólogos como Pablo Iglesias, Juan Carlos Monedero e o próprio Errejón. Identificado o afastamento entre a população e os partidos, decidem apelar precisamente à participação das pessoas das decisões e na gestão da vida pública. Porque, como dizia o lema do movimento 15M, que em Maio de 2011 encheu de "indignados" as praças espanholas, "eles [os políticos] não nos representam".
Num país cansado de constantes escândalos de corrupção, os membros da jovem formação apostam em dar o exemplo estabelecendo mecanismos como a transparência, o limite de salários e de mandatos. Para garantir a independência, rejeitam créditos dos bancos e recorrem ao "crowdfunding" para financiar todos os eventos, incluindo a campanha eleitoral das europeias, que custou 138 mil euros e se traduziu em 1.250.000 votos.
Na rua e nos meios de comunicação
"O Podemos é a prova de que é possível fazer política de outra maneira", acredita Aurora Auñon, nascida em plena Guerra Civil, que diz ter "recuperado a esperança" quando viu nascer esta nova plataforma política. Na juventude chegou a militar na Falange (partido que apoiou o franquismo) porque, diz, "na altura não tinha outra opção", acabando depois por se afastar da política "durante décadas". Agora, com 77 anos, é dos membros mais ativos do círculo do bairro de Salamanca.
Por isso, "queremos que sejam os cidadãos a decidir e não os poderes ocultos que não se apresentam a eleições", ataca do púlpito Errejón, referindo-se ao poder financeiro no discurso que profere no jardim de uma das zonas mais ricas da cidade.
Antes do início da apresentação do círculo de Salamanca, o promotor do Podemos desdobra-se em contatos com os apoiantes antes do início do evento. Sobe finalmente ao palco, onde é abordado por uma mulher que se lança a ele para o abraçar. "Para quem diz que o nosso sucesso está apenas ligado ao nosso aparecimento na televisão, temos aqui a prova que o envolvimento da cidadania é que nos faz ser o que somos", dispara o jovem politólogo de 30 anos.
Apesar do ar imberbe, Íñigo é já considerado figura carismática, e termina aplaudido de pé pelas mais de 300 pessoas presentes. Após o encontro, ainda marcará presença nos estúdios do canal "Sexta", onde agora substitui Pablo Iglesias como comentador residente na tertúlia política de sábado à noite, depois de este ter feito as malas para Bruxelas.
O salto mediático teve início no ano passado quando Iglesias foi convidado a participar no debate "El Gato al Água" do canal conservador Intereconomía. A capacidade de retórica do professor de Ciência Política não passou despercebida e, a partir daí, passou a ser cobiçado pelas estações de televisão generalistas. "As pessoas perceberam que o que pensavam estava correto e que não estavam loucas", justifica Juan Carlos Monedero ao JN.
À medida que aumentava a popularidade de Pablo Iglesias, intensificavam-se também as críticas provenientes dos adversários políticos: "populista", "bolivariano" e "tele-predicador" foram alguns dos adjetivos que aplicaram ao eurodeputado dirigentes tanto do PP como do PSOE.
Mas a presença dos fundadores do Podemos nos media vem de trás. Tendo identificado os meios audiovisuais como fundamentais na criação de opinião na sociedade, lançaram programas de debate como "La Tuerka", com convidados provenientes de todos os quadrantes políticos. Inicialmente emitido no "Tele K", um canal local de um bairro operário de Madrid, Vallecas, o formato pode agora ser visto durante a semana via web. A criação do programa foi, explica Juan Carlos Monedero, "o início de uma luta para mudar a hegemonia ideológica em Espanha". Hoje, embora Iglesias e outros elementos do núcleo duro de Podemos como Íñigo Errejón, Carolina Bescansa ou o próprio Monedero, sejam assíduos em vários palcos de televisão, não abandonaram os formatos alternativos.
Na rua e nos meios de comunicação, os membros do Podemos afiam as lanças para atacar o bipartidarismo espanhol, responsável, segundo defendem, pela degradação da situação política em Espanha. "Começámos a fazer ondas e, nesta altura, já somos muitos a navegar. Não somos um partido clássico, esses tempos já não funcionam. Somos uma força que conjuga uma altíssima participação popular com uma capacidade de decisão popular", afirma Juan Carlos Monedero ao JN.