Istambul acordou estranhamente calma para um dia tão importante. Os carros quase não buzinavam, era fácil andar nas ruas e até era quase fácil apanhar um táxi. Poderia ser a calma antes da euforia de uma vitória - ou de um desastre. A eleição mais importante do ano arrisca ser o momento de rutura para a democracia turca, cada vez mais nas mãos de um líder carismático que se quer eternizar no poder e tem limitado as liberdades civis para o conseguir.
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Quem foi votar terá reparado que, pelo menos no dia das eleições, o líder não envelheceu: Erdogan surgiu nos boletim de voto com a mesma foto das eleições de 2014 e 2018, apesar de a Constituição determinar de forma clara que um cidadão apenas pode cumprir dois mandatos presidenciais. Como a generalidade dos observadores internacionais apurou, esta foi apenas mais uma das formas como o presidente ignorou as regras para manipular o sistema a seu favor.
E é isso mesmo que, este domingo, ocorre, com um sistema mediático entregue aos amigos do presidente, uma censura efetiva da internet e um modelo judicial que tem aprisionado e impedido de participar em eleições os vários adversários do poder instituído. Há mais de vinte mil presos políticos, entre jornalistas, candidatos da oposição, elementos de minorias e outros ativistas.
Vasta participação eleitoral
Apesar disso, a democracia funciona. As eleições são sempre momentos vibrantes, com comícios simultâneos das várias candidaturas a ocupar as praças de muitas cidades e onde as taxas de participação eleitoral estão sempre acima dos 80%; a alternância de poder é uma realidade, e ainda nas últimas eleições locais os opositores de Erdogan conquistaram Istambul e Ancara e mantiveram Izmir.
O poder ainda se consolida nas ruas, e Erdogan sabe-o: por isso mesmo passou a última semana a oferecer aumentos de 45% aos funcionários públicos, gás natural gratuito para todos e mais uma série de benesses que não se sabe bem de onde poderão vir. A política económica de Erdogan foi considerada desastrada por todos os analistas - e pela realidade, que castiga o país com uma inflação galopante que chegou a atingir 85% em 2022.
O líder é carismático e tem muitos milhões de apoiantes espalhados pela Turquia rural, que valorizam o misto de nacionalismo e conservadorismo social do conhecido líder. Mas nas grandes cidades o panorama já mudou. A enorme crise económica a que a Turquia está sujeita torna a vida muito difícil para quem depende do pequeno comércio que tem a fatia mais dinâmica da economia real. É o caso de Demir, que gere uma loja de artesanato no coração de Sultanahmet, o bairro turístico de Istambul que recebia mais de 90 milhões de visitantes por ano antes da pandemia.
O comerciante reconhece que o número de turistas está a aumentar, mas que nem isso compensa o aumento "louco" do custo de vida que se nota em cada ida ao supermercado. Demir não entende o que aconteceu, mas sabe que isso chega para o fazer perder a fé e assumir que vai pela primeira vez votar noutro que não Erdogan. Em quem? "Isso não é preciso dizer" é a resposta, visto que só Kemal Kilicdaroglu pode derrotar o líder carismático que tem dominado o século XXI turco.
Este foi o candidato que uniu a oposição e que tem apostado num tom conciliador, fazendo sempre o símbolo do coração com as mãos e falando constantemente em união. Já prometeu que, se ganhar, vai cumprir apenas um mandato para devolver liberdade ao sistema e regressar ao modelo parlamentar.
A tranquilidade da candidatura tem surpreendido os turcos, mas muitos dos seus próprios apoiantes temem que não chegue para derrotar o todo-poderoso e carismático Erdogan. Eslem, estudante na Universidade de Istambul, é um desses casos: diz que conhece poucas pessoas acima dos 50 anos que se deixam seduzir pelo candidato da oposição e que mesmo os seus pais preferem apoiar o atual líder.
A estudante não desarma e assume, feliz, que "nunca" iria votar Erdogan: esta foi a primeira vez que vai às urnas e o voto foi para Kilicdaroglu. Apesar disso está cada vez mais descontente e acredita pouco na possibilidade de transição a curto prazo. Sentada num moderno café já do lado árabe de Istambul, assume que "mesmo que Erdogan perca, o modelo repressivo vai continuar" e a economia não vai recuperar tão cedo.
Discriminação e autocracia
Está a preparar a transição para um país da União Europeia e já optou por seguir Ciências Políticas em vez de Direito, a sua paixão original, por saber que a mudança profissional para outro país seria mais difícil.
Outro dos contrastes turcos está precisamente na sua relação com as populações migrantes. Apesar de ser o país do Mundo que mais refugiados recebe, tem sofrido uma razia na sua própria população, que procura na Europa - e aí quase sempre a Alemanha - para encontrar as oportunidades que não existem no país de origem. E o voto dos expatriados também desempenha um papel importante nas eleições.
A Professora Esra Ozyurek, diretora do departamento interreligioso da Universidade de Cambridge e renomeada investigadora das comunidades turcas migrantes, analisa de forma crítica a forma como Erdogan tem organizado as comunidades no exterior. "Utilizando agentes locais, Erdogan tem insistido em manter politicamente ativas algumas comunidades imigrantes. E isto tem sido feito especialmente em países europeus onde existe discriminação contra turcos e muçulmanos no geral, até porque os apoiantes de Erdogan apreciam que o país se erga contra o ocidente", refere.
Mas isso não conta toda a história das comunidades imigrantes espalhadas pela Europa: Desde 2016 que novas camadas da população saíram do país, "algumas por perseguição política e outras por desencanto com a gestão da economia e com o rumo político do país. Estes terão mais tendência a votar contra Erdogan e, como saíram há pouco tempo, ainda estarão dispostos a um envolvimento com a vida política. Está por ver se isso fará uma diferença grande nos padrões de voto Imigrante."
Dentro e fora da Turquia, será a economia a definir o resultado das eleições parlamentares e presidenciais. Erdogan subiu ao poder quando venceu as legislativas de 2002 depois da maior crise económica da Turquia em cinquenta anos, crise essa que foi agora superada com a gestão inepta dos últimos anos.
E é essa mesma economia que pode provocar a mudança de poder no Parlamento e, até, na Presidência. Este domingo irá saber-se se o destino do país é manter o caminho autocrático de Erdogan ou o retorno ao padrão democrático defendido por Kilicdaroglu.