O "Nord Stream 2" está pronto e aguarda luz verde da União Europeia para começar a abastecer o Velho Continente. Moscovo aproveita a atual crise energética para pressionar a decisão dos 27.
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A presidente da Comissão Europeia assumiu, na terça-feira, que a União Europeia é demasiado dependente das importações de gás e apelou a um "verdadeiro trabalho de equipa" dos 27 para tornar a Europa mais resiliente no domínio energético. O apelo surge numa altura em que a subida dos preços da energia na Europa ameaça a recuperação económica pós-pandemia e o aquecimento das casas dos europeus durante o inverno. E quando a entrada em funcionamento do gasoduto russo "Nord Stream 2" desperta tensões e receios, dentro e fora do Velho Continente.
Os 1230 quilómetros de tubagem do "Nord Stream 2" (NS2), desde a Rússia até à Alemanha, estão prontos para deixar fluir o gás, mas a entrada em funcionamento do gasoduto está dependente da certificação da União Europeia (UE). "Se pudéssemos aumentar as entregas por essa rota, aliviaríamos substancialmente a tensão no mercado europeu de energia", disse, o presidente russo, Vladimir Putin, na semana passada. "No entanto, não pudemos fazer isso até agora por causa das barreiras administrativas", lamentou, colocando pressão sobre a UE.
"Alguns analistas dizem que Rússia estará por detrás desta manipulação de preços, uma vez que tem pressa em ter o NS2 funcional. E isto porque é uma fonte de receitas extraordinária", contextualiza Paulo Duarte, professor de Ciência Política da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, precisando que o regulador europeu está a analisar se o monopólio russo no controlo do gasoduto vai contra as leis da UE.
A construção do "Nord Stream 2" sob as águas do mar Báltico, um investimento de 9,5 mil milhões de euros, alimentou divisões e desconfianças entre a Europa e os Estados Unidos, e entre os próprios países europeus. A Alemanha apoiou o NS2, apesar das tentativas dos Estados Unidos de criar obstáculos à construção. Mas em julho os dois países entenderam-se quanto à Ucrânia, por onde passa grande parte do gás que a Rússia fornece à Europa, o que rende a Kiev 1,7 mil milhões de euros por ano em taxas de passagem.
Kieve teme não só as perdas económicas como o isolamento energético daqui a três anos, quando terminar o acordo de abastecimento de gás com Moscovo se a EU aprovar esta derivação para o Báltico. Isto apesar do compromisso assumido entre a chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente dos EUA, Joe Biden, de envidar todos os esforços para que o acordo entre a Ucrânia e a Rússia seja prolongado por mais dez anos.
Maria Isabel Tavares, docente da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica e especialista em Direito Internacional, estima que, considerando o percurso do gasoduto, há uma forte a probabilidade de haver uma diminuição do fornecimento do gás via Ucrânia. "Porém, é importante sublinhar, aquela diminuição não será apenas uma consequência direta da entrada em funcionamento do Nord Stream 2. Veja-se, a cada vez mais reforçada utilização por parte da Rússia da rota via Turquia - Turkstream para o fornecimento de gás a países europeus. No início de outubro, a Hungria e a Croácia passaram a ser fornecidos por essa via", esclarece a docente.
"Se é verdade que a Europa necessita da energia produzida pela Rússia, não é menos verdade que a Rússia depende, economicamente, da exportação dos recursos energéticos, também para a Europa", evidencia Maria Isabel Tavares. Só no ano passado, os gás russo representou 43% das importações de energia da UE. "Compreende-se, por isso, que Moscovo tenha vindo a falar dessa preocupação, nomeadamente a propósito da negociação da renovação do contrato com a Ucrânia para lá de 2024", acrescenta.
Dependência da Rússia
O abastecimento pelo NS 2 implicará uma maior dependência europeia da Rússia, em termos energéticos. Não havendo alternativa aparente, face à fraca capacidade de armazenamento de gás natural dos países produtores da UE, ao aumento da procura na retoma económica pós-pandemia e à proximidade do inverno, é encarado como a melhor solução.
O gás natural e o carvão representam, ainda, mais de 35% da produção energética total da UE, apesar de as energias renováveis terem sido a principal fonte de eletricidade dos 27 pela primeira vez no ano passado. No entanto, as assimetrias entre os vários países da UE e a dependência do gás natural, principalmente para o aquecimento das casas, são suficientes para amarrar o Velho Continente a uma crise energética.
"A Rússia é a principal exportadora do mundo de gás natural, mas os EUA, desde há algum tempo, têm um potencial extraordinário na exportação de gás natural. E não estão a ver de bom tom este acordo do Nord Stream 2, ainda que Donald Trump fosse mais hostil", nota Paulo Duarte. "Os EUA também querem exportar para a UE", sublinha.
"Interessa à Rússia, que os estados europeus, e a Alemanha sobretudo, tornem mais rápido o funcionamento do Nord Stream 2. E, claro, a partir daí, há os que dizem que a Rússia é a grande responsável pela manipulação e está a reter stocks para assim subir preços ... tudo se conjuga", diz Paulo Duarte. "Mas eu diria que os EUA não são isentos de responsabilidade, também porque têm pressionado, ao longo deste tempo, e criado sanções e complicações a estados e empresas adeptas do Nord Stream 2. É efetivamente um jogo geopolítico e um jogo geo-económico", conclui o professor universitário.
Maria Isabel Tavares chama a atenção para a estratégia de longo prazo que estará também a ser pesada neste jogo de equilíbrios. "Não é ignorada pela UE, e tão pouco pelos EUA, a construção em curso por parte da Rússia de um gasoduto que a ligará à China e o impacto, em cascata, que no médio prazo esse fornecimento terá", refere a professora universitária, sublinhando que esta estrutura terá um efeito alargado no equilíbrio de poderes geopolítico, estratégico, económico e ambiental.
Da Europa, ouve-se críticas ao aumento duradouro da dependência energética em relação à Rússia que chegará com a abertura das torneiras do NS2. Um grupo, composto por mais de 40 membros, do Parlamento Europeu enviou uma carta à Comissão Europeia pedindo "para abrir urgentemente uma investigação sobre uma possível manipulação deliberada do mercado pela Gazprom e uma potencial violação das regras de concorrência da UE".
"A autorização do gasoduto Nord Stream 2, uma visão bilateral russo-alemã que não faz parte de uma visão compartilhada da Europa e não respeita o território ucraniano, enfraqueceu a posição da Europa como garante do bem comum a favor do mercantilismo de alguns países fortes como a Alemanha ", disse Carlo Andrea Bollino, professor da Universidade de Perugia. "Isso pode ser atribuído a Bruxelas. A UE não teve coragem de dizer não à Alemanha", acrescenta o académico, citado pelo canal "Euronews".
Maria Isabel Tavares nota que a entrada em funcionamento do Nord Stream 2 representa o reforço da posição privilegiada da Alemanha como porta de acesso do gás à Europa com os ganhos económicos que isso representa. "E nessa medida, também para os Estados pelos quais a rota passa, mas também aqueles cujas empresas participam no consórcio", acrescenta.
A Gazprom reúne consórcio de empresas de cinco países: Uniper e Wintershall, da Alemanha, OMV, da Áustria, Engie, da França, e a anglo-holandesa Royal Dutch Shell, e é responsável pela operação do NS2.
Crise no armazenamento
Com o desconfinamento após a pandemia da covid-19 e a retoma da produção mundial, empresas de todo o mundo tentaram comprar energia. A pressão da procura está na origem deste contínuo de subidas. Em agosto, as tarifas de energia bateram recordes, contrariando a curva normal de preços que tradicionalmente baixa no verão.
Nesses meses, as empresas costumam aproveitar para comprar mais barato para armazenar e preparar a chegada do inverno, mas a crise de preços atirou as reservas atuais para níveis historicamente baixos nesta altura do ano.