Gaza: "Desfecho pode ser rápido e resultar em perdas territoriais para os palestinianos"
Sandra Costa, analista em assuntos do Médio Oriente, explicou ao JN o que terá levado o Hamas a atacar Israel e quais as consequências de uma intervenção terrestre israelita na Faixa de Gaza.
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Apesar de ter uma capacidade militar inferior à do Exército israelita, o Hamas avançou com uma demonstração de força em larga escala. Porquê agora?
A situação na Palestina tornou-se absolutamente insustentável. Desde o início do ano já morreram quase 200 palestinianos em confrontos com Israel. E, portanto, a situação era muito, muito tensa. Gaza é uma verdadeira prisão a céu aberto, as pessoas não têm eletricidade, não têm água, não têm equipamentos médicos, o que torna a situação muito grave. Para piorar, desde que o Governo israelita assumiu o poder, têm existido muitos ataques contra civis palestinianos o que tem deixado a população exausta e fragilizada e fez com que a Palestina se tornasse num caldeirão prestes a explodir. E foi isso que aconteceu no sábado. Obviamente que também existem questões geopolíticas mais profundas. A intenção de haver uma normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita também terá aumentado a revolta. A partir do momento em que Riade normaliza a relação com Israel, a luta palestiniana fica praticamente morta, pois é na Arábia Saudita que estão os dois locais mais sagrados do Islão. Este retomar dos laços entre os dois países também não interessa ao Irão, que é o grande patrocinador de movimentos como o Hamas e o Hezbollah, e é aqui que surge um ponto importante. Há relatos de que existiu, no mês passado, uma reunião de alto nível entre os membros do Hamas e os membros das Forças Revolucionárias Iranianas, de modo a obterem apoio para uma ofensiva desta dimensão. O ataque de sábado tem ainda a vertente simbólica, que se prende com a celebração dos 50 anos da guerra do Yom Kippur, que foi iniciada a 6 de outubro de 1973. Também esta ofensiva apanhou Israel de surpresa, sendo que, na altura, o país demorou algum tempo a reagir.
A presumível reunião entre o Hamas e as forças iranianas terá servido para dar apoio militar e moral a uma ofensiva tão ampla em território israelita?
Sem dúvida. E só assim o Hamas terá conseguido conduzir uma operação que foi uma enorme surpresa, uma vez que o Exército e os serviços de informação israelitas são dos melhores e mais bem preparados do Mundo. Portanto, independentemente do desfecho deste conflito, toda esta situação já foi um fracasso terrível para Israel. Por outro lado, e além de um eventual apoio externo, o Hamas também aproveitou o contexto político que se vive em Israel, onde a sociedade está fragmentada e onde, desde o início do ano, se tem visto milhares de israelitas a protestarem contra o Governo e contra as decisões tomadas pelas elites dos serviços de informação e de segurança. O Hamas sabe que este seria o momento certo para iniciar este conflito. Sentiram-se confortáveis com contexto político e social que se vive no país. É impressionante como conseguiram chegar a postos militares e a edifícios ligados aos serviços de segurança, mesmo ali do outro lado da fronteira de Gaza, e isto só foi possível porque mesmo dentro do Exército israelita existe desunião. Ao longo do último ano, têm-se visto reservistas e até generais de alta patente a dizerem que mesmo que sejam chamados para combater não vão, muito devido ao descontentamento que resulta da atuação do Governo de extrema-direita. Há aqui uma certa descoordenação que permitiu estes avanços. Esta foi uma operação muito bem pensada e terá, certamente, demorado meses até ser lançada.
Israel já reagiu ao ataque e não descartou uma operação terrestre na Faixa de Gaza. É possível que haja uma diminuição do território palestino?
Sim, aliás, o líder da oposição, Yair Lapid, que disse estar, neste momento, a tentar deixar de lado as diferenças com Benjamim Netanyahu, informou que não está fora de questão uma invasão terrestre por parte das forças israelitas. Israel deverá lançar uma ofensiva em Gaza nos próximos dias e há poucas dúvidas de que o país irá cantar vitória. Estamos a falar de 300 mil reservistas que serão chamados, a juntar a um Exército poderosíssimo. Está também a caminho a ajuda norte-americana, assim sendo, penso que eles poderão dominar facilmente o território, tendo em conta que os palestinianos, ou, neste caso, os militantes do Hamas, são muito menos. Mesmo que alguns civis palestinianos sintam alguma simpatia pelo movimento e ajudem na luta, não será um conflito equitativo. Aliás, o desfecho pode ser rápido e resultar em perdas territoriais para os palestinianos.
Quais as consequências da tomada de Gaza para os palestinianos?
Para começar, a questão dos dois estados está morta. Não é possível ressuscitar os Acordos de Oslo e a ideia de um Estado com dois povos também não é possível. O Governo que está no poder, por parte de Israel, tem elementos que rejeitam totalmente a integração da Palestina. Alegam que Israel tem que ser um Estado baseado na identidade judaica e que não há lugar para outros povos. Portanto, a situação vai intensificar-se. Nos próximos tempos, haverá reações muito intensas por parte de Israel e até uma tentativa de exterminar o Hamas. A partir daí será difícil para os palestinianos resistir, mas conta-se com a intermediação internacional.
O conflito e a rejeição da integração da Palestina em Israel é agora uma mais valia para o desgastado Governo de Benjamim Netanyahu?
Claro. Nada une mais um povo do que um ataque e, neste momento, penso que a sociedade israelita e mesmo a oposição israelita estará unida em torno da necessidade de defender Israel. Aliás já se fala na possibilidade de formar um Governo de emergência. A liderança israelita sai reforçada e esta situação faz com que os problemas no seio do Governo sejam deixados para segundo plano. Contudo, não nos podemos esquecer que foram muitos elementos deste Executivo, e até das Forças Armadas, que atiçaram as tensões desde que assumiram o poder. Não justifica de modo algum o que está a acontecer, mas a verdade é que, no último ano, o discurso de ódio aumentou. Circulam na Internet vídeos horríveis de ataques a partir de colonatos israelitas, onde se pode ver o Exército de Israel a proteger os atacantes e se os palestinianos tentam responder são quase sempre detidos, o que também foi alimentando a explosão que agora se deu.
Além do Irão, no contexto internacional, quais são os atores que mais podem beneficiar com este conflito?
O Irão beneficia até porque, muito provavelmente, vai ver cair por terra o acordo que estava prestes a ser concretizado entre Israel e a Arábia Saudita, vendo, assim, as questões domésticas do Médio Oriente a ficarem mais controladas. Mas também há a questão da Rússia. O facto de agora os Estados Unidos estarem a enviar meios para Israel faz com que haja um desvio das atenções relativamente à Ucrânia. Esta situação deixa alguma margem de manobra à Rússia. Neste momento, pouco ouvimos falar da guerra na Ucrânia, continua a haver ataques, continua a haver guerra, mas o Mundo está agora de olhos postos no conflito israelo-palestiniano e acredito que as forças do Kremlin poderão aproveitar isso.