A mais jovem mulher a chefiar um executivo, a segunda mulher a dar à luz enquanto chefe de governo, o "pó das estrelas" que levantou o espírito dos neozelandeses em 2017, a primeira-ministra que foi "forte" com o mal em duas crises e "generosa" com as vítimas, justificando o lema que deu ao mundo em 2019, diz que "o tanque está vazio". Jacinda Ardern, de 42 anos, anunciou a resignação ao cargo de primeira-ministra da Nova Zelândia. "Sou humana. Os políticos são humanos", disse, na hora do adeus.
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Jacinda Ardern chegou ao patamar mais elevado da política neozelandesa em 2017, com uma aura de celebridade que a levou a um clube exclusivo de que faziam parte estrelas da política internacional como Barack Obama, o primeiro afroamericano a chegar à presidência dos EUA, ou Justin Trudeau, o menino bonito do Canadá. "Uma fama mundial desproporcional para o tamanho do país", observou o comentador político Toby Manhire, no momento em que a primeira-ministra da Nova Zelândia anunciou que vai deixar o Governo. Nascida em Hamilton, a 26 de julho de 1980 (vai fazer 43 anos), Jacinda chegou à chefia do Governo em outubro de 2017. Aos 37 anos, foi a mais jovem mulher a chefiar um Executivo, entretanto ultrapassada por Sanna Marin, eleita na Finlândia em 2019, aos 34 anos.
Ardern, a mais nova das duas filhas de um casal mórmon, passou os primeiros anos de vida em Murupara, uma cidade conhecida como centro da criminalidade dos gangues maori, a etnia originária da Nova Zelândia e largamente marginalizada. A convivência com "crianças descalças e sem comida" inspirou-a a entrar para a política. Agnóstica, Jacinda afastou-se da religião de família, que condenava a homossexualidade e se opunha ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Em 1997, com 17 anos, enquanto frequentava o curso de Estudos de Comunicação na Universidade de Waikato, Jacinda inscreveu-se no Partido Trabalhista. Com a ajuda de uma tia, fez campanha pela reeleição de Harry Duynhoven como representante do distrito de New Plymouth no parlamento neozelandês. Depois de terminar o curso, foi trabalhar como investigadora para outro deputado trabalhista, Phil Goff. Esta experiência levou-a a um lugar entre o "staff" da então primeira-ministra neozelandesa, Helen Clark, heroína política e mentora de Ardern. Em vez de ir fritar batatas para uma cadeia de "fast food" ou servir cervejas num "pub" londrino, fez o habitual tirocínio dos neozelandeses de classe média e alta em Inglaterra no gabinete do então primeiro-ministro britânico Tony Blair, entre 2005 e 2007, ano em que foi eleita como presidente da Juventude da União Socialista Internacional, aos 27 anos.
No ano seguinte, em 2008, foi escolhida para liderar a candidatura do "Labour" no distrito de Waikato. Perdeu por 13 mil votos, mas entrou no Parlamento, por via da legislação neozelandesa, que permite aos partidos cooptarem candidatos distritais para lugares nacioinais. Tinha 28 anos. Três anos depois, mesmo tendo perdido a chamada "Batalha das babes", com outra jovem mulher e estrela da política neozelandesa, Nikki Kaye, pelo lugar de representante do distrito Auckland Centro, um dos mais importantes no país, manteve o lugar no Parlamento, à boleia da mesma regra. Renovaria em 2014, nas mesmas circunstâncias, perdendo outra vez para Kaye (agora por 600 votos, contra 717 três anos antes). O apoio a David Shearer na corrida a líder trabalhista valeu a Jacinda a escolha para porta-voz do Desenvolvimento Social. Mais tarde, Andrew Little aumentou-lhe o portfólio, acrescentando as pastas das Artes, Cultura e Herança Cultural, além de Crianças e Justiça e ainda Pequenos Negócios.
A jovem que gostava de ser DJ e instalou a "Jacindamania"
A jovem política, e mulher, que gostava de ser DJ ganhava notoriedade na Nova Zelândia. O envolvimento romântico com o apresentador de televisão Clay Gayford, com quem vive atualmente e tem uma filha, Neve, também ajudou a catapultar a imagem de Jacinda. Em 2017, dizem que após sete recusas, aceitou candidatar-se ao lugar de líder do Partido Trabalhista, após a renúncia de Annette King. Escolhida para encabeçar o "Labour", a 1 de agosto, Ardern partiu para a campanha das eleições de setembro com 25% das intenções de voto. A figura jovem, de sorriso franco, generosa e que queria tirar as crianças da pobreza e ajudar os marginalizados, cativou os neozelandeses.
Mulheres e jovens embarcaram na "Jacindamania" e o Partido Trabalhista conseguiu 36% dos votos, contra 46% do Partido Nacional (NP), que acumulava nove anos no poder. Contados os votos especiais, que incluíam os da diáspora neozelandesa e os por correspondência no próprio dia, o "Labour", juntando sete lugares dos "Verdes", ficou com 53 assentos, contra 58 do NP, e foi atrás dos nove deputados do Primeiro Partido. Após um mês de negociações, Winston Peters, de 72 anos, juntou-se a Jacinda e aos Verdes para uma coligação de Governo. "Demasiados neozelandeses olham para o capitalismo como um inimigo em vez de um amigo", disse, numa comunicação televisiva em que anunciou o apoio a Ardern, que soube pelas notícias, como os neozelandeses, que iria ser a 40.ª primeira-ministra do país.
Nove meses após a formação da coligação, Jacinda deu à luz. A menina, hoje com quatro anos, que fez primeiras páginas em todo o Mundo quando a mãe a levou a uma reunião na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, parece ser um dos vários motivos para a resignação de Jacinda. "Neve, a mamã está ansiosa por estar contigo quando começar a escola, este ano", disse, no emotivo discurso em que anunciou que deixaria o gabinete, no máximo, até 7 de fevereiro. "Clarke, vamos finalmente casar-nos", acrescentou, dirigindo-se ao companheiro.
"Humana, empática e firme". A mulher que sabia enfrentar crises
"Sou humana. Damos tudo o que podemos pelo tempo que podemos e então chega o momento. E para mim, é o momento", explicou Jacinda, que em seis anos de Governo teve de enfrentar duas grandes crises - a covid-19 e o atentado de Christchurch, em 2019. "A resposta ao ataque terrorista foi absolutamente extraordinária", disse Toby Manhire, comentador de política do jornal "The Guardian". Jacinda denunciou o autor do ataque, um supremacista branco, como terrorista, e aprovou legislação de controlo de armas, com o apoio dos outros partidos, em claro contraste com a atuação, por exemplo, de Donald Trump, nos EUA.
"Empática, humana, mas também firme, inabalável ao enfrentar os problemas desconfortáveis que a situação expôs", acrescentou Manhire, lembrando a reação de Jacinda, forte mas generosa, ao ataque a duas mesquitas que custou a vida a 51 pessoas, na cidade de Christchurch. "Eles somos nós", disse após o atentado. "Sempre foi uma líder que esteve ao melhor nível nas crises - e infelizmente teve uma quota elevada com que lidar", observou, ao mesmo jornal, a historiadora Madeleine Chapman, autora da biografia não autorizada "Jacinda Ardern: A New Kind of Leader". Uma obra cuja tradução em português "Jacinda Ardern: Um novo tipo de líder" deixa de fora o trocadilho com "kind", que no original pode ser lido como "generoso", um dos vocábulos feitos fama quando a jovem primeira-ministra enfrentou a segunda, e talvez maior, crise nos seis anos de gabinete: a pandemia da covid-19.
"Sejam fortes e generosos", disse Jacinda no fim de uma conferência de imprensa, no dealbar de 2020, em que anunciou o isolamento e o fecho de fronteiras. Uma política restritiva que fez da Nova Zelândia um dos países do Mundo menos afetados pela covid-19, tanto em número de casos como de mortes. O "Labour" caía nas sondagens para as eleições de outubro de 2020, mas os neozelandeses reconheceram os méritos da governante, apesar dos custos da clausura para o PIB local, muito assente no Turismo, e deram-lhe uma maioria parlamentar única no país, com 64 lugares no Parlamento.
"Tem uma inteligência emocional excecionalmente boa - e essa era mesmo a qualidade necessária, particularmente durante a crise de Christchurch e também durante a pandemia", observou o comentador político Ben Thomas, ex-assessor do rival Partido Nacional. "A ideia de empatia e generosidade tem limites, porque a política é muito sobre negociação", acrescentou. E isso cansa, particularmente quem, desde o início da vida política, fez da empatia, da generosidade e da atenção ao outro uma forma de estar na vida e no Governo.
"Não posso e não devo fazer o trabalho a menos que tenha um tanque cheio e um pouco de reserva para os desafios inesperados que inevitavelmente surgem. Tendo refletido no verão, sei que não tenho mais aquele pouco extra no tanque para fazer justiça ao cargo. É simples", justificou Ardern, que já não vai liderar o partido na dura batalha eleitoral que se antevê para outubro de 2023.
A crise e os falhanços de Jacinda Ardern
A subida da inflação e um clima económico adverso, de origem externa mas sentido muito internamente, alteraram o estado de espírito dos neozelandeses, esbatendo a popularidade de Jacinda e dos trabalhistas. O Partido Nacional surge como mais bem posicionado para vencer as próximas legislativas, num cenário de subida do partido de extrema-direita "Act".
Os neozelandeses olham novamente para o capitalismo mais como inimigo. O governo trabalhista falhou na resolução do problema da habitação, que deixou muitas pessoas a viver nas ruas, em automóveis ou em centros de acolhimento temporário. O conservadorismo natural do "Labour", que excluiu a criação de uma taxa sobre as grandes fortunas ou os rendimentos de capitais, assim como uma política de limites ao aumento dos impostos e focada no controlo do défice, limitaram as opções do governo em custear programas sociais em grande escala, para lá da resposta à covid-19, e afetaram a vontade de Jacinda de avançar com programas agrícolas e na redução das emissões de gases poluentes, como prometera.
Mas cumpriu muitas promessas, entre crises: deixa o país com um nível recorde de emprego, um salário mínimo que cresceu 30%, trabalhadores com licença parental paga de 26 semanas e mais dias de baixa por doença, além de um incremento na capacidade negocial dos setores mais fracos da economia.
"Espero ter deixado os neozelandeses com a crença de que podem ser generosos, fortes, empáticos mas decisivos, otimistas mas focados", disse Jacinda no discurso em que anunciou a resignação. "E que possam ser o vosso tipo de líder - aquele que sabe quando é tempo de sair."