A cidade que aguarda o avanço da temível máquina de guerra russa é a mesma Kiev cheia de cicatrizes de resistência multissecular a ocupantes violentos. Foram os vikings, os mongóis, os cossacos, os hunos, os magiares, as tribos eslavas e nazis e volta agora o invasor do antigo Império Russo e da União Soviética.
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Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin, citado esta segunda-feira pela TASS e pela AFP: "os militares russos estão prontos para o lançamento de ataques com vista ao controlo total das cidades ucranianas já cercadas".
Peskov acrescentou que, até agora, o presidente russo, Vladimir Putin, ordenou ao "Ministério da Defesa que não lançasse um ataque rápido aos grandes centros urbanos, incluindo Kiev", para evitar pesadas baixas civis.
Se o aviso do Kremlin se concretizar, sejam quais forem as preocupações humanitárias, no caso de Kiev, será só mais uma reincidência de uma história multissecular de violências, submissões, revoltas, emancipações e invasões sem fim a uma cidade que tem o infortúnio geográfico de estar na encruzilhada de tantos interesses geoestratégicos.
Os mísseis que agora apontam à Praça Maidan e aos bunkers de Volodimir Zelenski não causam nem mais nem menos pavor do que as hordas dos brutais "Ragnars" nórdicos que, no século IX, assaltaram e tomaram a fortaleza construída nas margens do rio Dnieper.
Ponto incontornável das rotas fluviais de comércio que ligavam o norte da Europa ao Mar Negro e a Bizâncio (atual Istambul), Kiev foi palco de sucessivos ataques e foi completamente arrasada pelas invasões mongóis de 1240, quando estava sob domínio russo.
Quatro séculos depois, a cidade de 100 mil habitantes foi invadida e ocupada pelos cossacos, com auxílio da Rússia, que restabeleceu a antiga colónia, na região que o império dos czares sempre cobiçou, por achar que era ali o berço do povo eslavo russo.
Sujeita ao jugo dos vizinhos - incluindo o do império austro-húngaro -, a resistência ucraniana só recuperou mais vigor já no século XX, graças aos movimentos nacionalistas que combatiam a russificação e o domínio da URSS.
Foi também dessa época que sobrou um dos períodos mais negros da história do "celeiro da URSS", o "Holodomor" (literalmente, "matar pela fome"), que sacrificou milhões de camponeses (entre sete e 10 milhões, segundo a ONU), vítimas da coletivização agrícola e das políticas opressivas de Josef Estaline.
Desta e de tantas outras cicatrizes - como o saque e destruição da cidade durante a II Guerra Mundial, às mãos dos nazis - sobra uma inevitável herança de ressentimento. Como já se viu neste século, na revolta do EuroMaidan e na "Revolução Laranja", pela aproximação política e simbólica à Europa, que Moscovo não admite, ao ponto de avançar com os blindados para uma "operação militar especial", como lhe chama a retórica do Kremlin.
A fortaleza construída na colina ocidental do Dnieper é agora uma cidade de 839 quilómetros quadrados, a sétima mais populosa da Europa, com 2 962 180 cidadãos (janeiro de 2021), sitiados e ameaçados pelo poderio das armas russas.
"A operação está a desenvolver-se de acordo com o plano e será concluída a tempo e na íntegra", garantiu o porta-voz do Kremlin. Dmitri Peskov acrescentou que Moscovo não indicará um prazo para o fim das operações militares na Ucrânia.