
Apoiantes de Bolsonaro continuam a bloquear circulação de estradas por todo o país
Caio Guatelli / AFP
Bolsonaristas continuam a causar o caos no país, enquanto especialistas em política brasileira consideram que os próximos dois meses não serão harmoniosos. Equipa de Lula da Silva, liderada por Geraldo Alckman, assume transferência de poder a partir de quinta-feira.
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Apesar de demorar a pronunciar-se sobre os resultados eleitorais do último domingo, Jair Bolsonaro discursou ao país na terça-feira e, ainda que tenha evitado falar em derrota, assegurou que vai "cumprir todos os mandamentos da Constituição". O presidente em exercício autorizou Ciro Nogueira, ministro-chefe da Casa Civil, a dar início ao processo de transição de poder, a partir de quinta-feira, no entanto, há uma certa imprevisibilidade sobre a forma como a transferência de funções poderá decorrer.
Embora a lei seja clara sobre os moldes em que o poder deve ser transferido para o novo presidente do Brasil, ainda não se sabe como serão os próximos dois meses, porém, há o receio de que sejam "muito turbulentos", antecipou ao JN, na edição impressa do dia 1 de novembro, Miguel Borba de Sá, especialista em assuntos brasileiros.
O presidente em exercício tem mais dois meses de liderança pela frente, mas após o insucesso eleitoral que, segundo a imprensa brasileira o deixou "desolado", não é clara a postura que irá assumir, sobretudo porque, apesar de a maior parte dos aliados terem assumido a derrota, os apoiantes bolsonaristas mantêm os protestos nas ruas do Brasil.
A Polícia Federal e a Polícia Militar conseguiram acabar com alguns focos de manifestações na terça-feira, mas na manhã de quarta-feira, 17 estados permaneciam com várias estradas cortadas por brasileiros que recusam aceitar que Lula da Silva será o rosto do poder ao longo dos próximos quatro anos.
No primeiro discurso após a derrota, Bolsonaro salientou que "todas as manifestações pacíficas são bem-vindas", mas alertou os apoiantes de que os cidadãos devem ter o "direito a ir e vir", condenado, em parte, os métodos usados para contestar os resultados eleitorais.
Após as palavras do líder brasileiro, contudo, o país continuou a deparar-se com um cenário caótico, onde faltou combustível em várias cidades, aeroportos tiveram de cancelar voos e fábricas foram obrigadas a encerrar a produção por falta de matérias-primas, o que não faz prever se os próximos tempos serão de contestação ou de harmonia.
Na perspetiva de Miguel Borba de Sá, a palavra "harmonia" não deverá pairar até 1 de janeiro de 2023, data em que o novo inquilino ocupa o Palácio do Planalto, já que o enorme sentimento de divisão entre a população pode culminar em atos de violência que "podem gerar um grau de confusão cada vez maior", não descartando um cenário de guerra civil nos próximos meses ou até "durante o mandato de Lula".
Em análise ao discurso do presidente, Maria Cristina Fernandes, colunista de política no jornal brasileiro "Valor Económico", acredita que Bolsonaro "vai infernizar a vida do país até o último dia" para negociar garantias após deixar o poder. "Ele quer um indulto, quer uma graça presidencial. Quer negociar a vida depois do poder", considerou.
Outros analistas em política brasileira, ouvidos por publicações do país, concordam que há uma forte possibilidade de os dois meses que restam a Bolsonaro serem marcados por queima de documentos oficiais, de modo a tentar camuflar provas que piorem as acusações inscritas nos processos judiciais que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem em mãos.
No primeiro dia do próximo ano, Bolsonaro fecha um capítulo da vida política, mas um outro poderá abrir-se e leva-lo à barra dos tribunais. Com a perda da imunidade presidencial, o atual líder brasileiro poderá ter de responder a quatro processos que estão a ser investigados pelo STF e que o envolvem diretamente.
Entrega da faixa presidencial
Relativamente à cerimónia de entrega da faixa presidencial ao novo chefe de Estado, um evento em que o presidente cessante entrega o símbolo nacional ao novo líder, e que acontecerá a 1 de janeiro do próximo ano, vários especialistas acreditam que Bolsonaro arranjará uma forma de não estar presente, evitando um frente-a-frente com o rival.
No entanto, Hamilton Mourão, vice-presidente do Brasil, afirmou, ontem, ter "quase a certeza" de que o presidente deverá cumprir o que está estipulado pela Constituição. "Vamos aguardar o momento. Mas tenho quase certeza que ele vai [passar a faixa]", declarou, pouco tempo após Bolsonaro ter discursado à nação. "O que ele falou hoje [terça-feira]? Que cumprirá as tarefas dele como presidente e o que está previsto na Constituição. Não está previsto que ele entregue lá a faixa para o outro?", frisou o vice-presidente.
Caso Bolsonaro opte por não comparecer na cerimónia, será a primeira vez em 37 anos que um presidente brasileiro não marca presença na tomada de posse do sucessor. O último chefe de Estado a recusar estar presente no evento foi João Batista Figueiredo, que, em 1985, foi substituído por Tancredo Neves.
O que diz a lei?
De acordo com a Constituição brasileira, o momento de transição entre os dois Governos tem a duração de dois meses, período em que a equipa do presidente eleito deverá trabalhar para obter informações detalhadas sobre o panorama nacional.
Como foi anunciado esta terça-feira, Geraldo Alckman, vice-presidente eleito do Brasil, vai coordenar a transferência de poder para Lula da Silva e estará responsável, a partir de quinta-feira, para inteirar a equipa sobre o funcionamento dos órgãos e entidades que compõem a administração pública federal, analisar as contas públicas e rever a estrutura de instituições federais e órgãos da administração pública, tal como está regulamentado pela Lei nº 10.609, de 20 de dezembro de 2002. Os titulares dos órgãos e entidades públicas ficam, por sua vez, obrigados a fornecer as informações solicitadas, bem como a prestar o apoio técnico necessário aos trabalhos.
Segundo a lei, que fez com que Lula da Silva fosse o primeiro presidente eleito a ter direito a uma equipa de transição, já que a norma foi promulgada durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso, podem ser criados 50 cargos em comissão, providos a partir do segundo dia útil após a data das eleições. As nomeações ficam sob responsabilidade do ministro-chefe da Casa Civil - cargo atualmente ocupado por Ciro Nogueira.
Um gabinete provisório deverá agora ser instalado durante o período de transição. Normalmente, o espaço utilizado para a realização dos trabalhos é o Centro Cultural Banco do Brasil, localizado em Brasília. A própria legislação prevê como obrigação do Governo em exercício disponibilizar aos eleitos local, infraestrutura e apoio administrativo necessário para o desempenho das atividades.
Também está prevista a possibilidade do presidente e do vice-presidente eleitos terem, mediante solicitação, segurança pessoal garantida, o que neste caso é provável que aconteça, tendo em conta os episódios de violência que se registaram durante a campanha eleitoral e a disseminação de protestos bolsonaristas por todo o país após se conhecerem os resultados do escrutínio.
