Casos de coação e abuso sexual no sistema de distribuição de alimentos doados assombra Moçambique. Os apoios estão a ser desviados do povo e aparecem à venda em bancas de comércio.
Corpo do artigo
LIB está metida no magote negro de gente de braços estirados em tensão, palmas abertas brancas levantadas para o céu, é imensa e desordenada a agitação, e ela espera, inexpressiva, parada, como se tudo lhe passasse ao lado, até que vai baixar os braços e depois os olhos, agora enterrados no chão.
À sua volta todos se agitam em movimentos braçais, tentaculares, alta vozearia, cabeceamentos, empurrões, mas ela não, gelificou. Ela já tinha percebido quando viu a cara do homem que está encostado ao camião, viu no seu olhar que ele dizia que não, até que ele disse isto que todos à volta ouviram também: "Tu não. Tu não levas comida. Vai para casa. Eu depois logo chego lá e dou o saco a você. Vai, não fica aqui parada, sai". E LIB saiu do meio da zoada, encabulada, pejosa e caminhou muito lenta, os pés escuros nas chinelas cor-de-rosa a levantar pequeninos anuviamentos de pó.
Ali é Lamego, um pobre povoado sem luz nem água potável, com casas de palha ou em tijolo cru, posto administrativo de Tica, distrito de Nhamatanda, província de Sofala, Moçambique central. Ali, faz hoje um mês, passou o ciclone tropical Idai, um monstro de nível 4 na medição de 0 a 5 da escala de Saffir-Simpson, que atravessou Moçambique pelo ventre meridional da Beira, a cidade costeira capital provincial de Sofala. A calamidade, seguida de grave inundação, deixou 603 defuntos confirmados, 1642 feridos graves e muitos desaparecidos por achar. Calcula-se que em todo o país, 1,5 milhões de pessoas continuem afetadas, 308 mil famílias. Mais de 111 mil casas ruíram, 112 mil perderam tetos ou paredes parciais, 16 mil estiveram submersas no aluvião.
Nesta noite ela não comeu
LIB - o acrónimo esconde o nome da mulher para sua proteção - esperou em casa sem jantar. O arroz que restava, uma mão menos cheia de grãos, foi cozido com água e uns pós de açafrão. Não tinha cebolas nem óleo, há muito que não faz refogados, é só o arroz na água a ebulir, proteínas nem vê-las, carne e peixe são uma miragem alimentar. LIB tirou a panela de cima do carvão que fogueava no chão, espanou a espuma e serviu a papa alaranjada aos três filhos, 2, 8 e 12 anos. Ela nada comeu. Deitou os meninos no colchãozinho no chão, o mais pequenino custou como é hábito a dormir, saiu silenciosa do quarto de chão em terra - não é bem um quarto, é uma parcela da sala que é também a cozinha e que está cortada a meio por uma cortina de pano esboroado de capulana - e depois pôs-se a esperar do lado de fora da casa, sentada num banquinho no cimento quente e carunchoso, sozinha na escuridão.
Isso é uma violação
O homem chegou já noite cerrada e LIB já o vinha a ver pela luzinha que fulgia que ele trazia numa mão a ziguezaguear; na outra carregava um saco branco de arroz, só meio cheio, agarrado pela goela. O homem chega-se, exibe o saco e dirige duas perguntas a LIB: "Tens fome?". Ela olha-o nos olhos, nada responde, não desvia o olhar. "Tens dinheiro?". Ela não responde, baixa os olhos, deixa-os cravos no chão. E o homem, que está ali ereto com o baixo ventre muito perto da cara dela, diz: "Então...", e as reticência ficam penduradas a trespassar o ar.
O homem quer entrar na casa, LIB diz-lhe que não, ele insiste, ela torna a dizer não, sussurra: "As crianças...". Ele hesita, pensa dois segundos, e depois ordena secamente: "Então vai buscar o colchão". Ela ergue-se, entra em casa, encosta a porta, sai logo depois com o retângulo de espuma debaixo do braço e pousa-o com leveza no chão. O homem diz: "Então? Deita-te!". Ela tira as chinelas cor-de- -rosa, arruma-as paralelas ao colchão, deita-se detidamente de costas, puxa a saia acima dos joelhos, entreabre-se e fecha os olhos.
Menos de cinco minutos depois, o homem levanta-se, afivela-se, ajeita a fralda, olha para ela, olha para o saco, exala e diz: "Se queres comer, já sabes como é". E vai-se embora pelo mesmo caminho, a luz a tremeluzir negrura, e LIB fica ali, emudecida e interminável numa posição fetal.
Menina de 14 anos abusada
"É a terceira vez que sou violada pelo mesmo o homem, ele marcou-me, não me dá comida", diz LIB com rigidez a passar a mão pelo cabelo crespado. "É um dos secretários do bairro, sei bem quem é, muitos sabem, o que ele faz, faz a outras mulheres sem marido como eu, divorciadas, viúvas, solteiras, abandonadas.
Várias mulheres estão a ser violadas em Lamego, apurou o JN no terreno, confirmando uma denúncia do ativista moçambicano Rui Miguel Lamarques que a expôs na quinta-feira no grupo de WhatsApp português "Rescue Beira". "Há dezenas, centenas de mulheres nessa condição, acredite, não é só aqui. Esses homens maus são vários e trabalham com os chefes da localidade. É o chefe quem faz as listas das pessoas e depois decide quem recebe, ou não, os alimentos doados, eles têm esse poder", diz ID, outra mulher de Lamego que o JN ouviu. Uma outra, MJ, expõe o pavor: "Não poupam ninguém, não têm escrúpulos, são homens maus. Há uma menina de 14 anos daqui, uma órfã que vive com a tia, perdeu pai e perdeu mãe no ciclone, elas são pobres, aqui somos todos pobres, eles também estão a violá-la, exigem sexo com a menina em troca de sacos de 10 quilos de feijão ou de arroz".
ABI, outra mulher - são as mulheres que aqui se confessam, os homens inquiridos não - denuncia outro esquema: "O chefe da localidade, eu digo o nome dele, é José Simão Size, ele atua combinado com os delegados dos bairros, também está a desviar comida da doação que depois é vendida nas mercearias dos indianos e dos bengaleses. Há comerciantes que nunca venderam arroz e agora de repente estão a vender. É estranho, não é?".
O chefe Size nega tudo
A comida doada a Moçambique é das jurisdição da FAO, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura. A distribuição, aqui em Lamego, é da World Vision, a ONG americana. Mas os problemas só começam depois, na pequena escala, entre os chefes regionais onde grassa a corrupção.
"É tudo mentira, mentira", diz o chefe Size após ouvir a exposição, "ninguém vende comida dada. Aqui está a vir pouca coisa, ainda não há para todos. Mas vai vir mais. Só hoje (12 de abril) o Ministro da Agricultura abriu as doações". E as violações? "Mas que violações? O senhor viu alguma? Não viu porque não há. Negro africano gosta muito de difamar. É tudo mentira. Eu amo o meu povo", diz o chefe Size que é dos poucos que usa sapatos ali.
As mulheres dirão depois que não se atrevem a ir à polícia, também aí lavrará a corrupção. "Não fazem nada, os corruptos", diz ABI, que expõe outro prejuízo social: "Sabe como chamam as outras às mulheres violadas? Chamam "As Dormidas", já viu o que isso é?".
LIB regressa, mostra a igreja que aquele bairro de Lamego perdeu. "A igreja foi embora, voou", diz ela a apontar um terreno de 8x15 metros que agora tem um tecto de chapas erguidas no pó preto sobre tortos paus. O altar é um escombro, mas hoje, domingo, haverá celebração. Às 7.30 horas chegam as crianças, às 9.30 os adultos, às 10 começa a missa. São esperadas 97 famílias que se sentarão no chão. "Somos cristãos, temos fé, a fé não voou e um dia Deus vai abrir a porta para nós, um dia, não sabemos quando, só sabemos que vai abrir e nós vamos entrar", e LIB fica pensativa até que ergue os olhos para o céu. O céu ensombra-se, entardece, parece que se liquefaz e num minuto será noite, a noite cai sempre de repente, está a rasgar-se, são vermelhos, raios amarelos, roxos, azuis, o céu é uma imensa flor carnívora crepuscular.