Um som agudo e os bebés nos centros de deslocados desatam num sufoco de lágrimas inconsolável. Têm o enfurecido ruído das balas gravado na curta memória. Os adultos estremecem com o impacto de uma manga a cair sobre os telhados de chapa ou com um avião a rasgar os céus. São marcas que ficaram em quem viu a família ser assassinada a sangue-frio, que perderam o trabalho de uma vida por conta de um conflito armado que em nada lhes diz respeito e que, desde o ataque à vila portuária de Mocímboa da Praia, em outubro de 2017, tem arrasado a província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique.
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Nos últimos dois anos, a "guerra" intensificou-se e os jiadistas conseguiram despovoar aldeias, controlar a principal estrada da província, empurrar cerca de 700 mil pessoas para campos de deslocados e, estima-se, matar mais de dois mil civis. Haverá 1,3 milhões de pessoas a precisar de auxílio humanitário e proteção devido à insegurança em Cabo Delgado.
A origem do conflito ainda é uma grande incógnita. Uns acreditam que é motivado pela ânsia de controlar a zona - rica em gás e outras matérias-primas -, outros que há uma insurgência armada com base num discurso religioso.
Embora a Amnistia Internacional denuncie o assassinato de civis pelas mãos do grupo armado localmente conhecido como Al-Shabaab, pelas forças de segurança e por uma empresa militar privada contratada pelo Governo, o Executivo nega qualquer envolvimento e afirma estar a fazer todos os esforços para pacificar a região.
Para Carlos Almeida, coordenador da portuguesa Helpo em Moçambique - organização não-governamental (ONG) para o desenvolvimento -, os insurgentes são radicais islâmicos, "mas, na verdade, estão contra o Estado e não contra a Igreja Católica e o objetivo deles é limpar o território nos arredores da exploração de gás". Quem "apoia" e com que "intuito" é que não é claro, acrescenta o responsável, que vive grande parte do tempo no país.
jovens aliciados para a jiade
E, nesta zona, conhecida como "Cabo Esquecido", a província mais pobre do país, de acordo com a Amnistia Internacional, é fácil aqueles grupos de rebeldes recrutarem jovens. "Há uma grande insatisfação social e, não havendo apoio ou emprego, os jovens tornam-se um alvo fácil. São aliciados com empréstimos e, na cobrança, obrigam os miúdos a ir para a jiade", afirma Carlos Almeida. "São também adolescentes que não têm nada a perder."
A maior preocupação sobre este conflito, desvalorizado constantemente pelas autoridades governamentais, é a crise humanitária que está a provocar. "A grande maioria dos deslocados só saiu de Cabo Delgado após sofrer atos de terror e ver as suas casas incendiadas. Esconderam-se no mato para tentar sobreviver."
Os centros de deslocados estão a abarrotar e a situação piora a cada dia que passa. No campo 25 de junho, que, com perto de seis mil pessoas, é o maior dos seis centros temporários de Metuge, a leste de Pemba, capital da província, "não há condições nenhumas". Quando chove, o que por esta altura do ano é demasiado frequente, "fica tudo cheio de lama".
Os surtos de cólera, que, segundo as Nações Unidas, já mataram pelo menos 55 pessoas e atingiam quase cinco mil casos em meados de fevereiro, não param de aumentar em Cabo Delgado. São uma preocupação maior do que a pandemia de covid-19 que assola o Mundo. "Apesar das ajudas, as pessoas estão a viver muito mal", alerta Carlos Almeida, que divide os deslocados em três tipos.
Há um grande grupo no distrito de Metuge, espalhado pelos seis centros temporários, que, apesar das dificuldades, já criou uma dinâmica própria, com venda de legumes, e até tem um alfaiate que confeciona máscaras e roupas.
O grupo dos que chegaram a cidades como Niassa e Nampula, porque tinham lá família, mas que agora não têm como viver, agravando também a situação dos familiares, é o que estará pior. Só a Pemba, chegaram cerca de 140 mil pessoas. Aqui, teme-se pelas crianças e jovens que, sem orientação, educação e movidos pelo instinto de sobrevivência, se podem virar para a delinquência.
Há ainda os que estão em aldeias, onde começaram a construir casas e machambas (hortas) e a conseguir melhorias nas condições de vida.
medo de falar abertamente
Percorrer os campos de deslocados ou as aldeias isoladas pelos islamistas é ficar com a imagem da verdadeira fome gravada nos olhos. Quem o conta é um membro de uma ONG que trabalha há largos anos neste país do sul de África, mas que pediu, ao JN, anonimato por recear pela própria segurança. Teme represálias por relatar a realidade de uma província onde faltam as oportunidades económicas, onde reina a malnutrição, onde a educação é parca e o acesso a água potável, eletricidade e saneamento é escasso.
As necessidades são tais que esta ONG optou por distribuir também sementes e ferramentas agrícolas para que quem já tem um pedaço de terra possa fazer crescer alimentos. Até porque, além da dificuldade no transporte de comida para zonas como Palma, isolada pelos atacantes, os stocks de mantimentos estão a baixar rapidamente. "O Programa Mundial de Alimentos distribui comida, mas o número excessivo de deslocados não permite que a ajuda chegue a todos", denuncia.
A juntar à desgraça, a chuva não dá tréguas. "Muitos dos abrigos [míseras tendas cobertas com lonas ou casas feitas de pau e dejetos de animais] estão a ficar submersos".
Independentemente da origem do conflito, uma coisa é certa para quem dedica a vida à ajuda humanitária: é preciso educar, investir na sociedade, criar oportunidades de emprego e, acima de tudo, para quem está na liderança, ter como prioridade o bem estar da população e não os interesses pessoais.
Pormenores
Quase metade vive na pobreza - Em Moçambique, quase metade da população vive abaixo do limiar da pobreza. Em Cabo Delgado, a taxa de pobreza ultrapassava, em 2015, os 50%.
Denúncia calada - O bispo católico de Pemba, D. Luiz Lisboa, alertou, no ano passado, que as forças de segurança estavam a usar força excessiva contra as pessoas deslocadas que procuravam refúgio na cidade de Pemba. Foi um dos primeiros a alertar para a gravidade do conflito. Em fevereiro, foi transferido para o Brasil, a sua terra-natal.
Fome infantil - Quase 40% dos deslocados em Cabo Delgado são crianças. Segundo dados da Unicef, agência da ONU para a Infância, cerca de 250 mil estão em risco grave de subnutrição e de exposição a doenças mortais.