Viktoriia e o marido esperaram três horas pelo autocarro que os tirou de Kiev. Victoria refugiou-se em casa dos pais, perto da capital. Max teme um incidente em Chernobyl mas garante resistência. E Lisa está pronta para ajudar o Exército ucraniano. Veem a Rússia como inimigo "louco" e pedem intervenção internacional.
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A "operação militar especial" na Ucrânia anunciada às primeiras horas da manhã por Vladimir Putin - e que, de acordo com Kiev, já destruiu pelo menos 74 instalações militares em mais de 200 ataques por todo o território - fez emergir vários relatos de ucranianos que veem cercada por tanques militares a soberania do país onde nasceram. Desenham um cenário grotesco que o cidadão comum só está habituado a ver em filmes sobre as Grandes Guerras e em livros de História. São relatos de medo, pânico, coragem e patriotismo, que chegam ao JN.
Fugiram com uma mala e os dois gatos
Ainda não passaram 24 horas mas "parece que já passou uma vida" desde que Viktoriia Chemerys, 28 anos, ouviu aquela que viria a ser a primeira de várias explosões a arrebatarem-lhe o coração durante o dia. Foi por volta das 5.30 horas. Estava a dormir - coisa que não tem conseguido fazer em condições nos últimos dias, preocupada com a intensificação dos confrontos no leste do país -, por isso não percebeu imediatamente se o estrondo que ouvira não muito longe de casa, em Kiev, era real ou pedaço de um sonho.
Percebeu-o ao ser acordada em sobressalto pelo marido, que lhe deu a notícia da invasão russa. "Nós considerávamos este cenário, mas não estava no topo da lista. Pensámos que isto fosse acontecer mais tarde, talvez daqui a algumas semanas, por isso não tínhamos nada pronto", conta, lembrando a banda sonora do momento em que fugiram de casa com os dois gatos, uma mala de roupa e duas mochilas com computadores, dinheiro e documentos: aviões militares a sobrevoar a capital e explosões de fundo.
O céu estava sombrio e nublado, por isso ouvíamos os ruídos dos aviões, mas não conseguíamos ver nada
Sem carro e sem táxis, Viktoriia e o marido andaram uma hora a pé até à estação de metro mais próxima. "Foi a parte mais assustadora. O céu estava sombrio e nublado, por isso ouvíamos os ruídos dos aviões, mas não conseguíamos ver nada. Só tínhamos a esperança de que fossem nossos. Não havia muita gente a pé nas ruas, a maioria das pessoas estava a conduzir... ou a tentar, o trânsito era caótico", recorda.
Quando chegaram à estação - que estava aberta a albergar todos os que procurassem abrigo e onde os metros circulavam normalmente -, Viktoriia e o marido juntaram-se à multidão que aguardava pelos autocarros e, ao fim de três horas de espera, conseguiram finalmente rumar a Kaniv, cidade a cerca de 150 quilómetros a sul de Kiev, onde vive a mãe de Viktoriia. "Não sei genuinamente o que fazer a seguir. Estar aqui é melhor do que estar em Kiev, mas também não me sinto segura", contou a jovem designer, cujo plano deverá passar agora por tentar chegar a Lviv, na fronteira com a Polónia.
Sanções severas não apenas "contra Putin e seus comparsas", mas contra "a Rússia e os russos em geral" é o que defende Viktoriia. "Porque eles são todos responsáveis. A única coisa que pode fazê-los protestar contra o governo é o frigorífico vazio", argumenta, acusando o povo vizinho de se deixar submeter a uma "lavagem cerebral". Isto num dia em que centenas de pessoas foram detidas em protestos anti-guerra na Rússia (cerca de 300 só em Moscovo).
"Eu vejo notícias russas, acompanho os programas, e eles querem realmente atacar todas as ex-repúblicas da União Soviética para 'darem uma lição à NATO'. Pelo menos é para isso que estão a preparar a população em horário nobre na televisão estatal", aponta, ao mesmo tempo que apela por apoio internacional, através do envio de armamento.
Acordou com a explosão e foi para a casa dos pais
Sair de Kiev também foi a solução de curto prazo encontrada por Victoria - é mais uma Victoria numa história sem vitória à vista -, embora de forma diferente do que no caso anterior. A ucraniana de 35 anos "dormia pacificamente" quando ouviu uma explosão. Apesar de toda a escalada de tensões com o "vizinho louco" da Ucrânia, os ataques de hoje apanharam-na de surpresa, admite Victoria, que não demorou a afastar-se do caos da capital (com filas por todo o lado) e fazer-se à estrada com a irmã e o cão rumo à casa dos pais, só a 10 quilómetros de Kiev.
"Nada longe. Não se tratou de sairmos da cidade. Não agarrámos nas nossas coisas em pânico e saímos de Kiev imediatamente", esclarece. Mas o colo da família falou mais alto: "Estarmos todos juntos dá-me mais segurança do que ficar em casa a preocupar-me com eles." Estão a tentar manter a esperança, diz, mas torna-se difícil ter uma atitude positiva quando Moscovo já controla Chernobyl.
"Pronto para defender" a Ucrânia
É precisamente lá que trabalha Max, 39 anos, que se mantém "calmo" mas "pronto para defender" o país. Partilha da preocupação manifestada pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, que, durante a tarde, considerou a tentativa russa de invadir Chernobyl uma "declaração de guerra a toda a Europa" - isto numa altura em que os militares russos ainda não tinham tomado a central nuclear, como veio a acontecer horas depois.
É uma guerra real, absolutamente real, provocada pela Rússia
Tendo em conta a perigosidade que é mexer em solo radioativo, Max receia um novo incidente que traga à memória a tragédia nuclear de 1986: "É possível. Teoricamente, podem provocar um ataque terrorista." Mas recusa fugir ao combate. "É uma guerra real, absolutamente real, provocada pela Rússia. Estamos a tentar resistir. Algumas cidades já estão ocupadas, mas continuamos a lutar. Se não os pararmos, vocês serão os próximos", diz ao JN.
Preparada para ajudar o Exército no terreno
Lisa Kochekova, 24 anos, vive no centro do país, numa cidade chamada Horishni Plavni, que vai escapando aos bombardeamentos. Há três meses que espreita as notícias mal acorda, "por causa da constante tensão entre a Rússia e a Ucrânia e o reforço militar nas fronteiras". Hoje, acordou mais cedo para trabalhar e, quando pegou no telemóvel, a primeira coisa que leu foi "Ucrânia em guerra".
"Estávamos todos cientes de que isto podia acontecer, mas pensávamos que seria apenas na região que já está em guerra há oito anos. Quando comecei a fazer 'scroll' no Facebook e a ver publicações de amigos meus de todo o país, percebi que já não era só no Donbass. Era em todo o lado", conta Lisa, que logo preparou uma mochila para o eventual cenário de ter de procurar abrigo em caso de ataque de míssil.
O Exército pode precisar de ajuda no terreno, vou fazer o meu melhor
Ainda assim, sair da cidade não está no seu horizonte. "Toda a minha família vive aqui e o Exército pode precisar de ajuda no terreno, por isso vou fazer o meu melhor para ajudar", garante a jovem da área da Comunicação, que compara Putin a Hitler e espera novas ofensivas para breve. "Dão-nos uma opção de paz que pressupõe a entrega de muitos territórios e armas, bem como liberdades. Por isso estamos à espera de mais ataques", prevê.
Para Lisa, hoje foi o dia em que o Kremlin mostrou ao resto do mundo o que a Ucrânia tem vindo a sofrer desde 2014. "A Rússia está a violar a nossa independência e soberania há oito anos, escondendo-se por detrás de 'separatistas'. Mas hoje, deixou cair a máscara e mostrou a cara, ao criar uma ameaça iminente ao nosso estado e à vida de milhões. Temos de lutar", afirma.
Naquele que considera um "cenário perfeito", gostava que a Ucrânia recebesse ajuda militar, com tropas de outros países ou, pelo menos, capacetes azuis da ONU. Mas não acredita "em contos de fadas". Por isso, diz, já é "ótimo" se o Ocidente "cortar a Rússia do sistema SWIFT [importante entidade na máquina financeira global], anular os seus vistos, impuser mais sanções económicas e, o mais importante, enviar armas". "Todo o armamento que chegou aqui nas últimas semanas ajudou-nos muito e, com ele, podemos proteger-nos e proteger a União Europeia".