A única vaticanista portuguesa já acompanhou mais de cem viagens papais ao longo de 30 anos de jornalista da Rádio Renascença. Ao JN, Aura Miguel conta como era o Papa que tinha sempre tempo para o outro.
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Conheceu três papas e de todos guarda memórias. De Francisco recebeu um bilhete com a marcação de uma entrevista, uma caixa de bombons e o prefácio para um livro - gestos de ternura que a comovem.
Como era o Papa Francisco longe das câmaras?
Ele era muito próximo, uma pessoa que tinha, como ele próprio diz, necessidade de conviver, de estar próximo dos outros. Numa entrevista até lamentou não poder sair à noite com os amigos, passear por Roma e ir a uma pizaria. Quando resolveu viver em Santa Marta, disse que precisava de conviver e um sítio cheio de gente. Fora das câmaras, ainda era ainda mais afetuoso, parece que tinha todo o tempo do mundo para aquilo que estamos a dizer. Na minha experiência como jornalista no avião papal, ficava estupefacta com a atenção, com o carinho que ele manifestava.
Qual foi o momento mais divertido que teve com o Papa Francisco?
São vários os episódios, de facto, porque como ele era muito falador e muito atento. Logo na primeira viagem papal, para o Brasil, quando ele conheceu todos os que habitualmente integram a comitiva e eu fui apresentada, disse-lhe que era portuguesa, da Rádio Renascença e, como íamos a caminho da Jornada Mundial, disse que fiz reportagem de todas exceto a primeira que tinha sido em Buenos Aires. Ele dá uma gargalhada e responde: “Olha, eu fui ao contrário, só fiz a primeira”. Um dos momentos mais marcantes foi quando tomei a iniciativa de lhe pedir uma entrevista. Parece bastante ridículo, tendo em conta que todos os jornalistas que vão a bordo é isso que querem, mas, não sei como, ele achou graça, e deu a entrevista uns meses depois.
Ele respondeu com um bilhetinho, não foi?
Sim, foi muito engraçado. Eu julgava que a entrevista estava a ser boicotada pelos secretários, porque nunca tive resposta, então levei uma cópia do pedido para entregar ao Santo Padre na viagem seguinte. Quando lhe ia entregar, para meu grande espanto, ele dá-me um envelope, com o meu nome escrito, e lá dentro estava a minha carta, mas já com a letra dele a marcar o dia e a hora. Nem o secretário dele sabia, foi ele quem marcou. Aliás, ele é muito autónomo, sempre foi, sempre fez tudo como entendeu, mesmo na doença, segundo dizem, ele era muito teimoso e não obedecia, mesmo aos conselhos mais prudentes.
E há também o episódio da caixa de bombons de rosas da Bulgária quando cumpriu as cem viagens papais…
Foi espetacular, fiquei literalmente de boca aberta porque ele já me tinha dado os parabéns e estava ótimo. Por isso, impressionou-me muito essa delicadeza de ter pedido a alguém para me dar um presente quando podia dar um daqueles terços mais chiques, mas deu-me simbolicamente rosas. Ainda tenho esses bombons, comi um ou outro, mas tenho os outros guardados.
E escreveu o prefácio para o seu livro.
Numa viagem, tinha-lhe pedido umas linhas no horizonte da JMJ em Lisboa e, para o meu espanto, nem uma semana depois, ao aterrarmos em Roma de regresso de uma viagem a África, eu já tinha o texto com quatro páginas espetaculares. Portanto, esse talvez foi o momento mais incrível. Isto aconteceu comigo, os meus colegas têm outras tantas coisas para contar. Ele era mesmo assim, já como cardeal andava na rua, viajava de autocarro e passava os domingos nos bairros mais pobres.
Qual foi a maior lição que recebeu do Papa Francisco?
A atenção ao outro, independentemente de não pensar como eu. Acho que Francisco era mesmo, como ele próprio dizia, o Papa do encontro e das pontes. E isso é uma grande lição. Além disso, ele sempre demonstrou uma certa coragem ao visitar os sítios mais difíceis e perigosos. Estou a pensar quando nós fomos a Bangui, na República Centro-Africana, ou agora a República Democrática do Congo, que ele queria mesmo ir e não deixaram, porque é muito perigoso. Ele ia aos sítios e punha o dedo na ferida porque era portador de uma mensagem de esperança. Quando foi eleito, na homilia de início de pontificado, sublinhou a importância da ternura. E eu acho que ele é mesmo o Papa da ternura e mostrou isso em muitos gestos de pontificado, por exemplo o facto de ele ter posto duas mulheres em níveis de grande responsabilidade na Cúria. Neste mundo tão apressado, ele estava sempre muito calmo e tinha sempre tempo para o outro. Ele gostava de visitar doentes e até deficientes profundos e demorar-se nesses contextos. Já desabafou que é uma espécie de reforço de energia para ele.
Falou das mulheres. Que evolução nota na Igreja com Francisco?
Na hierarquia da Igreja, sempre houve santas fundamentais, nomeadamente Santa Maria Madalena, que foi a primeira a quem Jesus apareceu depois de ressuscitado. Os sinais dos tempos também ajudam um bocadinho a mudar a perspetiva das coisas. Quando comecei, há 30 e tal anos, éramos pouquíssimas mulheres a bordo do avião papal e agora já não se liga a isso, portanto, acho que há sempre uma evolução, um caminho natural.
Um caminho natural mas lento.
Sim, porque tem de ser consolidado. Muitas vezes, olha-se para a questão da mulher na Igreja só com um olhar político ou de carreira e na Igreja há outros critérios. Há mulheres absolutamente mais importantes na Igreja do que homens. Estou a pensar na Madre Teresa Calcutá, que foi Nobel da Paz. Era uma freira, não queria ser sacerdote. Muitas vezes, as pessoas simplificam, como se a mulher só tivesse um verdadeiro lugar na Igreja se fosse padre. Essa não é a minha perspetiva, eu acho que a vocação é multifacetada e há mulheres absolutamente incríveis, que dão a vida e que não estão nessa missão de carreira. Aliás, o Papa diz que uma mulher governa muito melhor uma casa do que o homem. Portanto, eu acho que é um bocado o sinal dos tempos, mas não parece já ser uma grande revolução.
Na sua opinião, então, qual será o principal legado de Francisco?
Não consigo responder a isso. É demasiado rico para conseguir sintetizar assim.
Já chorou numa emissão em direto durante uma visita do João Paulo II a Fátima. Já se emocionou também com o Papa Francisco?
Com João Paulo II comovi-me porque ele já estava muito, muito doente. No ano 2000 quis vir a Fátima para beatificar os pastorinhos. Ele já tinha enviado a bala que o devia ter morto e que está na coroa de Nossa Senhora. Dessa vez, ele trouxe um anel. É um anel importantíssimo na vida dele, que tinha sido dado pelos polacos, para oferecer à Virgem de Fátima. Eu estava a descrever isso, a sentir a gratidão que João Paulo II tinha à Nossa Senhora de Fátima por causa do atentado de 13 de maio de 81 – ele disse: o meu pontificado só foi três anos (de 1978 a 81), tudo o resto foi milagre -, é uma história tão intensa, que eu fiquei comovida. Tal como fiquei muito comovida o gesto do Papa Francisco quando disse que me dava a entrevista de uma maneira completamente inesperada e quando ele me ofereceu as rosas da Bulgária. Achei que era um gesto de ternura para uma mulher. Ele tinha mais que fazer, era chefe de Estado, tinha tido imensos discursos oficiais, devia estar estafado, como é que ele ainda conseguiu, no meio de uma agenda tão carregada como são as visitas pastorais, ter pedido a alguém para encontrar uma prenda feminina de ternura para com uma mulher?
Uma vez disse que João Paulo II era o Papa da Esperança, Bento XVI era o Papa da Fé e Francisco o Papa da Caridade. Porquê?
A caridade implica ir ao encontro do outro, não se centrar em si. Francisco sempre pregou uma Igreja que não seja autorreferencial e dava o exemplo, ao sair ao encontro dos outros, daqueles que mais precisam, dos mais esquecidos. Ele era movido por um grande amor ao outro, por uma forma de caridade. Caridade é aquela definição maravilhosa do São Paulo, que é tudo que não é egoísta, tudo que não é centrado em si. Isso surgiu num encontro que me perguntaram como é que eu poderia definir cada um deles só numa palavra. Não é fácil, porque eles são multifacetados, mas achei que aquela juventude que o João Paulo II introduziu na Igreja, naqueles anos de Guerra Fria tão complicados, vindo da Polónia, e sendo eleito com 58 anos, era claramente uma lufada de ar fresco, uma esperança. O Papa Bento XVII era um grande teólogo e, durante o pontificado, insistiu na urgência de aprofundar as razões da fé, daí o Papa da Fé. Mas, claro, Francisco também é o Papa da fé e da esperança. Ou seja, não foi nenhuma tese teológica, decorre da observação dos papas em ação pelo Mundo fora.