Cerca de 700 mil crianças em Gaza ficarão sem acesso ao ensino pelo terceiro ano letivo consecutivo, que deveria arrancar esta semana no enclave palestiniano arrasado pela guerra, indicou hoje a UNICEF.
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Numa conferência de imprensa virtual a partir da Faixa de Gaza, a porta-voz do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) para o Médio Oriente, Tess Ingran, indicou que o número total inclui as mais de 50 mil crianças que deveriam ter tido esta semana o seu primeiro dia de aulas e várias crianças que já deveriam ter concluído o ensino, mas não tiveram essa oportunidade devido à guerra que eclodiu no enclave em outubro de 2023.
"Quando falo com crianças em Gaza, costumo perguntar: 'Quando tudo isto acabar, o que mais querem fazer de novo? Vão dançar? Vão cozinhar?' Na maioria das vezes, dizem-me: 'Não, quero estar na escola. Quero voltar para as aulas, para os meus amigos, para os meus professores'", relatou.
UNICEF está a montar centros temporários
A UNICEF, juntamente com organizações parceiras, está a montar centros de aprendizagem temporários em toda a Faixa de Gaza, contando com cerca de 90 neste momento.
Nesses centros são oferecidas aulas de árabe, ciências e matemática, mas Tess Ingran frisou que o cariz dos mesmos é temporário e que as aulas não duram uma semana escolar completa.
"Precisamos mesmo de voltar a ter uma educação formal para estas 700 mil crianças que estão a perder" o acesso à educação, defendeu a porta-voz.
Além da questão do ensino, a representante da UNICEF focou o seu testemunho na subnutrição e na fome que estão a enfraquecer os corpos das crianças de Gaza, um lugar "onde a infância não consegue sobreviver".
"É uma cidade de medo, fuga e funerais. (...) O impensável não está iminente - já está a acontecer", assegurou, referindo-se à escalada na situação dramática que as famílias palestinianas enfrentam.
"A fome estava em todos os lugares que olhei na Cidade de Gaza", disse.
Uma tigela de lentilhas ou de arroz por dia
A ONU declarou a fome na província de Gaza no mês passado, a primeira vez no Médio Oriente, e alertou que a situação deverá alargar-se às províncias de Deir el-Balah (centro) e Khan Yunis (sul) até ao final de setembro.
O Governo israelita negou a existência de fome em Gaza.
Contudo, segundo relatou Tess Ingran, basta passar uma hora numa clínica de nutrição de Gaza para apagar qualquer dúvida sobre a existência de fome.
Salas de espera cheias, pais em lágrimas, crianças a lutar contra o duplo golpe da doença e da subnutrição, mães que não conseguem amamentar, bebés a perder a visão, o cabelo e a força para andar são alguns dos aspetos relatados pela representante da UNICEF.
Uma tigela por dia, quase sempre lentilhas ou arroz, partilhada entre a família, com os pais evitarem a comida para que as crianças possam comer, é a realidade que os palestinianos enfrentam, contou ainda Ingran.
Os horrores em Gaza arrastam-se há tanto tempo que algumas crianças estão a regressar às urgências ou a sofrer recaídas poucas semanas após terminarem o tratamento para a subnutrição, devido à contínua falta de alimentos, água potável e outros mantimentos essenciais, denunciou a porta-voz.
Crianças a morrer à fome e sem cuidados médicos
"Sem acesso imediato e alargado a tratamentos alimentares e nutricionais, este pesadelo recorrente irá agravar-se e mais crianças morrerão de fome. Um destino totalmente evitável", declarou ainda Tess Ingran.
Também os hospitais da Cidade de Gaza atingiram há muito o limite.
Dos 11 hospitais que ainda funcionam parcialmente, apenas cinco dispõem de unidades de cuidados intensivos neonatais.
"As 40 incubadoras, em conjunto, estão a funcionar até 200% da sua capacidade, o que significa que cerca de 80 bebés estão a lutar pela vida em máquinas sobrelotadas, totalmente dependentes de geradores e de material médico que pode acabar a qualquer momento. Como sobrevivem a uma ordem de evacuação?", questionou a porta-voz.
"As crianças estão a ser mortas ou mutiladas enquanto dormem, quase todas as noites", acrescentou.
Face a este cenário, a UNICEF voltou a apelar a Israel para que permita a entrada de ajuda suficiente em Gaza e o acesso seguro e consistente para que os agentes humanitários levem assistência vital às famílias, onde quer que estejam.
Por fim, apelou também à comunidade internacional para que utilize a sua influência para acabar com a guerra.
"O custo da inação será medido pelas vidas de crianças soterradas em escombros, devastadas pela fome e silenciadas antes mesmo de terem a oportunidade de falar. O impensável na Cidade de Gaza já começou", concluiu Tess Ingran.