Jill Biden, 69 anos, e Melania Trump, de 50, são as mulheres dos candidatos democrata e republicano às eleições de 3 de novembro. Mais do que as diferenças políticas entre os seus maridos, o que separa as duas é a perceção do seu papel na política atual.
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Não existirá na política americana um cargo que seja tão nebuloso, e ao mesmo tempo tão palpavelmente visível, quanto o da primeira-dama, a mulher do presidente. A função é maioritariamente ornamental - o papel nunca foi codificado ou oficialmente definido -, mas o seu peso é sério e desmedidamente profundo; dele depende muita da ótica geral com que se olha para o presidente e para a sua ação, com as primeiras-damas a bramirem os currículos de esposas e mães com um objetivo demarcado: humanizar a figura e suavizar a missão dos seus maridos.
Uma primeira-dama deve ser empática, isto é, relacionável e acessível ao cidadão comum. Ao mesmo tempo, exige-se que seja uma mãe e uma esposa perfeita e uma ativista de moralidade elevada. Ironicamente, e não se trata de uma contradição, quanto menos políticas conseguirem ser, ou quanto menor for a sua imiscuição na política real, mais capital político conseguirão agregar junto dos eleitores - não por acaso, as primeiras-damas têm sempre taxas gerais de aprovação popular superiores às dos seus maridos presidentes.
Neste novo tempo temente da pandemia do coronavírus, com inéditas restrições e novas regras de aparição e representação social, mais os eleitores sentem necessidade de ver na primeira-dama um respaldo de confiança e reconforto. E esse papel da mulher é muitas vezes, mesmo no caso do atual presidente Trump, que se inclina cada vez mais da direita do GOP para a extrema-direita do nacionalismo supremacista, um papel visto como suprapartidário.
contundentes opostas
Na eleição deste ano, com a corrida de 3 de novembro dividida entre Joe Biden, do Partido Democrata, humanista e de centro-esquerda, e Donald Trump, direitista e conservador, apostado no divisionismo e na polarização, renova-se o destaque do papel da primeira-dama. E não podiam ser mais diferentes as contendentes.
Jill, de 69 anos, casada há 43 com Joe, é professora com dois mestrados em educação, priorizou sempre a sua carreira e afirmou-se por si própria - nos oito anos em que o marido foi vice do presidente Obama (2008-2016), nunca abandonou os alunos, nem deixou de dar aulas; fá-lo agora pela primeira vez como candidata a primeira-dama.
O seu papel na campanha democrata é efetivo e real: ajudou a escrever o programa de Educação da candidatura e discursa com frequência sobre temas políticos ou de peso ambiental, assumindo-se como a "primeira assessora" do seu candidato. Pormenor maior: a sua opinião foi fulcral na escolha de Kamala Harris, uma mulher negra, para vice de Joe Biden.
Melania, 50 anos, casada há 15 com Donald, eslovena, é uma ex-modelo de carreira erodida e minimal, que nunca concluiu o curso de arquitetura que apregoa e que não fala cinco línguas como o seu marido gosta de gabar (nem alemão, italiano ou francês; só esloveno e inglês de forte sotaque, revelou a biógrafa Mary Jordan em "The art of her deal").
Figura evasiva, esfíngica e distante, sem pensamento político autónomo ou cognoscível, é muito vistosa mas meramente decorativa na corte presidencial - é nessa exata medida que quer ficar mais quatro anos.
Realidade alternativa
O seu peso político seria só ornamental não vivesse hoje a América submersa numa realidade alternativa em que o culto da "celebridade" e a sobre-excitação do "entretenimento" ganharam peso desrazoável, avassalador, desproporcional.
Mas é essa a América de hoje: conta infinitamente mais a ilusão do que se promete (a realidade parece estar sempre a caminho, sempre no futuro, nunca no presente porque o presente é verificável e sofre de contraditório), do que aquilo que se faz e que tem aderência ao real. Exemplo claro é a "causa" que Melania escolheu como primeira-dama, que se verifica agora ter uma ironia que deveria ser mortal: decidiu defender o anti-bullying digital, mas sem reparar que tem em casa um marido que é hoje, e comprovadamente desde há quatro anos, o maior "bully" mundial.