Nas linhas do rosto, a expressão assertiva de quem transitou, na última década, entre a liberdade e o cárcere. Maria Alyokhina é uma das fundadoras das Pussy Riot, movimento político russo, ativista e feminista, que usa a música e o rasgo performativo como veículos de combate ao regime repressivo liderado por Vladimir Putin. O grupo chega agora a Portugal ancorado numa digressão europeia, "Riot Days", que visa angariar fundos para um hospital pediátrico em Kiev.
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Passaram 11 anos desde o arranque do vosso movimento político e performativo contra o regime liderado pelo presidente Vladimir Putin. O que mudou desde então?
Muitas coisas mudaram, desde que fizemos a nossa primeira ação, que foi no momento em que Putin anunciou que iria ser presidente pela terceira vez. Muitas pessoas começaram a protestar e foi um enorme movimento de protesto, não só em Moscovo mas por toda a Rússia, em todas as cidades. E as Pussy Riot nasceram como parte deste grande movimento. Começámos a participar não só nos grandes comícios, que aconteciam quase todos os dias, mas também a fazer as nossas próprias ações com músicas e concertos em lugares inesperados.
Como o concerto na catedral ortodoxa, há 10 anos, que vos deu visibilidade mundial.
Na verdade não é uma catedral, é um palco político para Putin. E, a partir deste palco, o patriarca Kirill, que é apenas mais um oligarca com outra vestimenta, promoveu-o como um santo, quase como um czar para a Rússia, como um monarca. Nós fizemos a nossa música, "Mother Mary vanish Putin", primeiro para fazer este "statement", e, em segundo, para mostrar a relação hipócrita entre a Igreja Ortodoxa Russa e o regime de Putin. Este é um monstro russo muito único, colocar como santos os ditadores da União Soviética. Isto é terrível, porque durante o período da União Soviética os cristãos eram perseguidos, enviados para campos de trabalhos forçados, presos durante 15, 20 anos, só por celebrarem o Natal. Portanto, temos um patriarca, o líder da Igreja Ortodoxa, a promover um antigo agente do KGB, Vladimir Putin, identificando-o como o homem mais santo da Rússia. Apresentamos na Catedral do Cristo Salvador apenas 40 segundos dessa música, e estivemos dois anos na prisão por causa disso.
Foi enviada para um campo de trabalhos forçados.
Fui enviada para um campo de trabalhos forçados nos Montes Urais, junto à Sibéria, sim, a 1200 quilómetros de Moscovo. Eu estive na verdade em dois campos, porque tive uma briga com a administração, estive oito meses numa prisão em Moscovo, seis meses na colónia penal número 28, que fica nos Urais, e depois vários meses na colónia penal número 2, que ficava mais perto de Moscovo. Foram quase dois anos, um ano e dez meses. Depois eles determinaram uma amnistia especial para mim e para a Nadya [Tolokonnikova], antes dos Jogos Olímpicos, porque nessa altura eles queriam salvar a face e fingir serem democráticos, pró-Ocidente. Quando fomos libertadas, fizemos a primeira ação logo um mês depois, nos Jogos Olímpicos, e foi a primeira vez que recebemos violência física, fomos espancadas por cossacos que trabalhavam para a polícia. Foi o momento em que percebemos que tínhamos saído para um novo país. E depois a Crimeia foi anexada e Putin começou a sua guerra contra a Ucrânia, que estava ainda escondida.
Pouco antes da anexação da Crimeia, tinha-se dado a Revolução de Maidan, em Kiev.
Sim. Putin ficou extremamente zangado com esta revolução e com a vitória desta revolução.
Portanto, para russos e ucranianos esta invasão da Ucrânia não foi de todo inesperada, há oito anos que estava para acontecer.
Sim.
O vosso ativismo e intervenção pública estão hoje muito focados na guerra, Putin mantém-se o alvo primordial. Consideram que não houve mudanças expressivas no contexto russo da última década?
Muitas coisas mudaram.
As pessoas estão mais conscientes do alcance do regime repressivo?
Quando as Pussy Riot apareceram nós éramos uma espécie de pioneiras enquanto prisioneiras políticas, agora existem milhares de casos como os nossos. Há pessoas a ir para a prisão todos os dias, e já não é um escândalo internacional, quase não chama a atenção. E isto é perigoso, quando tens um caso político contra ti e isso não merece qualquer atenção, porque, em silêncio, eles podem fazer o que quiserem contra ti. Por isso é que estamos a chamar a atenção para os prisioneiros políticos. Para a Rússia houve uma grande mudança, quase quatro milhões de pessoas deixaram o país desde o início da guerra, como, por exemplo, quase todos os jornalistas independentes. Não é só devido à situação em que toda a imprensa livre foi esmagada, mas porque agora constitui formalmente crime escrever artigos sobre a Ucrânia.
Até mesmo escrever a palavra "guerra" ao invés de "operação militar especial".
Exatamente. Foi uma escolha de continuar a ajudar a Ucrânia fazendo a cobertura, reportagens e entrevistas a partir do terreno.
Na vossa perceção, o que justifica esta invasão? Qual a ambição do presidente Putin em relação à Ucrânia?
É muito simples, o seu principal sonho é reconstruir o corpo morto da União Soviética tomando os territórios de outros países, não só a Ucrânia. Por exemplo, a Bielorrússia também. Mas a Bielorrússia tem um dos mais terríveis ditadores, Lukaschenko é muito amigo de Putin, e está a conceder território para uso dos objetivos de Putin. Se Lukaschenko recusar que os tanques russos passem através do território da Bielorrússia, a Rússia invade também a Bielorrússia. Eles odeiam também os países bálticos.
Pensa que estará a ser considerada a invasão também desses países?
Eles não têm recursos para fazer a guerra em duas frentes, não têm recursos para o fazer em simultâneo, para isso teriam que mobilizar todos os homens na população russa, algo que não querem fazer. Estão agora numa situação sem ponto de retorno. A única forma de os travar é cortar a entrada de dinheiro no país.
Que alimenta a máquina da guerra.
Sim, a máquina da guerra. Metade do dinheiro que entra é proveniente do petróleo e gás natural, portanto, isto devia ser cortado de imediato, porque são biliões de euros todos os dias.
É neste contexto geopolítico que enquadram a tour europeia que organizaram para angariar fundos para a Ucrânia, que tem como nome "Riot Days", como a autobiografia que a Maria publicou em 2017.
É uma tour baseada no meu livro, é a minha história desde a nossa primeira ação até ao último dia na prisão, mas não é só sobre esse período. Escrevemos uma nova música há alguns meses.
Sim, uma música de apoio à Ucrânia.
Chamamos-lhe "Anti-war song/ Canção anti-guerra". Apresentamo-la neste tour, escrevemos todas, foi um trabalho coletivo. Vão ouvi-la no concerto, é o nosso statement contra esta guerra. Pusemos muito nesta música e na sua letra. E estamos a angariar dinheiro para um hospital pediátrico em Kiev, que trata crianças que foram feridas pelo exército russo. Este hospital trata em particular os casos mais graves.
Por que países já passou a digressão "Riot Days"?
Alemanha, Holanda, Bélgica, viemos agora da Áustria. E agora Portugal. Precisamos de fazer mais, mas o mais importante é contarmos às pessoas a nossa história porque, para muita gente, as Pussy Riot são só uma banda punk, mas nós somos um coletivo político e temos uma história, temos uma mensagem.
Uma mensagem feminista, ativista...
... e anti-Putin.
Um movimento político que usa a arte como veículo.
Exatamente. Ainda me custa a acreditar que, no século XXI, com a internet, com a disseminação tão rápida da informação, temos quase um III Reich na Rússia. Ainda é muito difícil de acreditar e aceitar.
Esteve presa muitas vezes, só no ano passado foram seis. Escapou da Rússia há pouco mais de um mês, quando se encontrava em prisão domiciliária. De que modo é que essa experiência de contínuo encarceramento mudou a sua vida?
Passei pelo meu segundo processo criminal, puseram-me num regime de prisão domiciliária muito rigoroso, não estava autorizada a sair do apartamento nem para colocar o lixo na rua. Foi algo muito novo, essa forma de me prenderem. Na verdade é muito perigosa, porque depois do tempo de pandemia, muita gente passou a considerar a detenção em casa como um auto-isolamento, o que não é de todo verdade, é completamente diferente. Não é uma escolha da pessoa. Claro que superares-te a ti própria e ultrapassares as dificuldades faz-te mais forte, mas cada momento da nossa vida muda-nos, não é só sobre prisão e perseguição e lidar com a polícia. Penso que cada pessoa enfrenta as suas dificuldades, cada um de nós tem os seus medos. A nossa motivação é prosseguir através do medo.
Como vive com o medo todos os dias? Como se contorna o medo, uma vez que essa perseguição é contínua?
Não vivo com o medo todos os dias.
Importa rejeitar o medo?
Não é possível rejeitar o medo, porque o medo é um sentimento. É interessante atravessá-lo, passar por ele.
Só não permitir que ele nos domine.
Não, não. É na verdade uma experiência muito estranha. Porque eu atuei muitos anos na Europa, e é interessante quando de cada vez que estamos aqui temos uma audiência incrível e muita gente a aplaudir-te e dizer-te que és uma heroína, apesar da barreira linguística. Muita gente aprecia o que fazemos mas não tem a possibilidade de se organizar em coletivo, porque todas as plataformas onde as pessoas podem fazer ações políticas ou mesmo eventos, estão fechadas ou foram encerradas, na Rússia. Sempre que vejo a bandeira ucraniana na varanda de alguém, recorda-me que, na Rússia, o preço de um gesto desses é de vários anos na prisão, e aqui as pessoas podem fazê-lo abertamente. Às vezes as pessoas esquecem-se do que têm, porque têm-no todos os dias.
E num regime como o russo têm que lutar por isso todos os dias.
Sim.
À terceira tentativa, conseguiu sair da Rússia, um mês depois da sua namorada. Pareceu-lhe uma missão quase impossível?
Eu não lhe chamo escapar, porque eu apenas queria participar na tour. Não tinha quaisquer planos de emigrar ou pedir asilo político, eu só queria fazer a tour, estar presente enquanto fosse possível, para angariar dinheiro, para chamar a atenção para a necessidade de embargo ou para o que nós passámos, para contar a nossa história. Porque penso que ainda não há um entendimento claro do que se está a passar na Rússia e na Ucrânia. Tive algumas dificuldades, porque estava sob um processo criminal, portanto eles ficaram com os meus documentos.
Tiraram-lhe o passaporte, inclusive.
O internacional, sim. O interno eu tenho, mas não é possível atravessar nenhuma fronteira com ele.
À semelhança do que acontece na China. Tem receio de uma aproximação da China à Rússia? Xi Jinping não apoiou declaradamente esta invasão, mas está próximo de Putin.
Eles já estão a ficar mais próximos, mas a Rússia é diferente e Putin é diferente, não há ideologia nisto. Tenho esperança que possamos travá-lo.
Acredita que a Rússia possa caminhar para um sistema democrático? Ou tal só será possível num espaço temporal dilatado?
Claro que a Rússia se pode tornar uma democracia, há muitos políticos incríveis, e ativistas e artistas, há muitas pessoas incríveis lá que podem fazer coisas.
Mas será necessária uma maior intervenção internacional, é isso?
Penso que a primeira coisa que todos necessitamos é de um tribunal para Putin, e julgar os crimes internacionais que cometeram, os crimes de guerra.
Mas num tribunal internacional, não na Ucrânia.
Sim, claro. Sim, devia ser em Haia. Esse é o primeiro passo.
A música, a arte ainda carregam uma possibilidade de mudança política?
Acredito na solidariedade artística, e acredito, como a Olga [Borisova] disse, que devia ser um movimento global internacional anti-guerra. E os artistas têm uma voz muito forte. Porque, se és artista, tens a liberdade e ao mesmo tempo a responsabilidade de mudar o mundo. Porque é que eles têm medo da arte política? Porque a arte política mostra outra imagem, não aquela que eles querem apresentar. A arte pode virar a imagem deles de cabeça para baixo a qualquer momento, torná-la ridícula, e enviar a mensagem ao mesmo tempo. Quero mesmo que este movimento exista e cresça. Quase todos os artistas russos começaram a angariar dinheiro para a Ucrânia, depois de a guerra começar. E mesmo aqueles que eram muito pró-Governo e receberam dinheiro do Estado e que faziam espectáculos na televisão estatal, mesmo esses deixaram o país para ajudar a Ucrânia. E isso é algo que não tínhamos antes.
Vocês costumam dizer que "qualquer um pode ser Pussy Riot". Qual o significado, hoje, de ser Pussy Riot, uma década depois de terem iniciado o movimento?
Penso que é muito simples. Pussy Riot é um coletivo artístico, feminista e político. Portanto, se alguém está a fazer arte anti-ditadura, feminista, e quer chamar-lhe Pussy Riot, pode fazê-lo. Se quer fazer uma ação de rua e chamar-lhe ação Pussy Riot, pode fazê-lo.
Atribuir ao movimento uma dimensão global.
Sim, sim. Não é um partido político com cartão de membro, é um movimento aberto.
Espera regressar a casa em breve ou este não é o momento para o fazer? Sempre quis permanecer na Rússia, lutar a partir de dentro.
Obviamente, não posso falar dos meus planos.
Estamos a falar de uma ideia de futuro.
A ideia principal agora é ajudar a Ucrânia a vencer esta guerra. Se a Ucrânia perder esta guerra será um desastre para o mundo inteiro, porque eles não vão parar. Estou a dizer isto desde 2014. Não é só o aprisionamento de todos aqueles que não concordam com eles, é sobre a construção de um enorme império ditatorial. Eles querem estar em primeiro lugar no mundo, isso tem que ser travado.
Hoje [6 de Junho] completa 34 anos, e o desejo continua a ser conquistar a democracia para o seu país. Será possível dentro do seu tempo de vida?
Não sei, penso que devo fazer tudo o que puder e ver o que acontece. Tenho um filho com 15 anos e quero isso para ele, mas tenho esperança que para a minha geração também.