A marcha dos mercenários do Grupo Wagner em direção a Moscovo confundiu líderes militares e dirigentes locais. Uns porque achavam que se os homens de Prigozhin estavam em movimento era porque havia aval do Kremlin, outros incrédulos à espera de ordens de Putin, que terá ficado paralisado durante 48 horas. Escondido.
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O presidente russo, Vladimir Putin, foi avisado com dois a três dias de antecedência para a possibilidade de uma rebelião do Grupo Wagner. Segundo uma investigação do jornal norte-americano "The Washington Post" (WP), foi aumentada a segurança no Kremlin, com mais homens armados no núcleo do poder russo, mas nada mais. O "Urso" escondeu-se no covil. Hibernou.
"Putin teve tempo para tomar a decisão de liquidar a rebelião e prender os organizadores", disse um oficial de segurança europeia, em declarações ao WP. "Mas, quando começou, houve paralisia em todos os níveis. ... Houve absoluta consternação e confusão. Durante muito tempo, não souberam como reagir", acrescentou.
Estas declarações, sob anonimato, vão ao encontro dos comentários públicos do diretor da Agência Central de Informação norte-americana, a CIA, William J. Burns. Durante cerca de 36 horas, entre 24 e 26 de junho, militares e decisores políticos "pareciam à deriva". As informações de inteligência ajudam a explicar o que tem sido visto como o maior desastre do governo de Putin - como o bando armado de combatentes de Prigozhin, exigindo a destituição do ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, e do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Valery Gerasimov, se aproximou do centro de poder.
A desorientação do Kremlin perante a movimentação dos mercenários enfraqueceu o presidente russo, principalmente aos olhos dos críticos. "Putin mostrou-se uma pessoa que não é capaz de tomar decisões sérias, importantes e rápidas em situações críticas. Escondeu-se, simplesmente", disse Gennady Gudkov, ex-coronel dos serviços de segurança russos. "Isso não foi percebido pela maioria da população russa. Mas foi muito bem compreendido pela elite de Putin. Ele não é mais o garante da segurança e da preservação do sistema", acrescentou o antigo militar, agora político da oposição no exílio.
Uma versão contrariada pelo porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov. Em declarações ao “Post”, considerou que as avaliações dos serviços de informação eram "absurdas" e partilhadas "por pessoas que não têm informação" alguma sobre o que aconteceu.
"Houve desordem. Podemos discutir a profundidade do problema, mas realmente houve falta de acordo", contrapôs um membro sénior dos círculos diplomáticos russos. "Ouvimos todas essas declarações. Nem sempre foram consistentes... Durante algum tempo, não souberam reagir". Durante 36 horas, os homens de Prighozin avançavam no terreno, com o apoio de populares e até de líderes militares ou governadores locais.
A falta de ordens do Kremlin deixou os dirigentes locais, alguns incapazes de conceber a ideia de que a marcha do Wagner poderia acontecer sem aprovação central, a decidir por si como agir, de acordo com fontes de serviços de segurança europeus citados pelo WP.
"O sistema autoritário é formado de tal forma que, sem uma ordem muito clara da liderança, as pessoas não fazem nada. Quando a liderança está em turbulência e desordem, a situação é ainda pior a nível local", argumentou um responsável das forças de segurança ucranianas. "As autoridades locais não receberam qualquer ordem do comando central. Do nosso ponto de vista, esse é o principal sinal da situação pouco saudável que se vive na Rússia", acrescentou a mesma fonte.
Sem ordens claras, as chefias militares e governadores locais decidiram não interferir na marcha armada do GW, que deixou a frente de batalha na Ucrânia e entrou pela Rússia dentro, até dar meia volta quando estava a cerca de 200 quilómetros de Moscovo, capital e centro do poder russo.
A alegada desordem no Kremlin também reflete uma divisão cada vez maior dentro do sistema militar e de segurança da Rússia sobre a gestão da guerra na Ucrânia, com muitos, incluindo patentes elevadas dos serviços de segurança e militares, a apoiar o esforço de Prigozhin para derrubar a liderança militar da Rússia.
"Alguns apoiaram Prigozhin e a ideia de que a liderança precisa ser limpa, que o peixe está a apodrecer", disse um funcionário de uma das autoridades de segurança europeias. Segundo um funcionário superior da NATO, figuras importantes do círculo de Moscovo estavam prontas a unir-se ao líder do Grupo Wagner, caso fosse bem-sucedido. "Parecia haver pessoas importantes nas estruturas de poder que estavam à espera disto”, acrescentou.
Muitos na base do exército russo também queriam que Prigozhin conseguisse forçar mudanças no topo das forças armadas russas, acreditando que "seria mais fácil lutar" na Ucrânia. Mas outros membros do sistema de segurança ficaram horrorizados com a tentativa de motim e com a reação do Kremlin.
Membros da elite russa disseram ao "Post" que a divisão sobre a condução da guerra e a gestão feita pela liderança militar russa continuará, apesar de um esforço de relações públicas do Kremlin para demonstrar que Putin está a controlar e que há uma campanha para expurgar as fileiras do exército russo de críticos e apoiantes de Prigozhin.
Uma tarefa que não será fácil, dado o enraizamento do antigo "chef" de Putin entre as elites russas e as hierarquias militares, que frequenta desde a última década do século XX. O líder do Grupo Wagner "trabalhou por mais de 20 anos para a equipa de Putin. Fez muito pelos interesses russos numa série de países. Ele tem uma enorme quantidade de informações" sobre eles, disse Vladimir Osechkin, um ativista russo dos direitos humanos que entrevistou vários mercenários. "Criaram um monstro", advertiu uma das autoridades de segurança europeias ouvidas pelo Post.