Presidente gostou da repressão que viu em Portland e promete "salvar" metrópoles da "esquerda radical".
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As sondagens que dão vantagens de dois dígitos ao candidato democrata às presidenciais de novembro, Joe Biden, quer na intenção de voto, quer na capacidade de gestão da pandemia de covid-19, são "falsas", pelo que quem vai vencer é o presidente republicano, Donald Trump. Diz o próprio. São falsas, mas Trump prefere, ainda assim, secundarizar a crise sanitária na agenda mediática e obscurecê-la com o punho forte com que trava a criminalidade, confundindo protestos antirracistas com crime.
Na semana passada, mandou agentes federais para Portland, Oregon, para acabar com semanas de manifestações pacíficas, ao arrepio da Constituição e sem concertar a medida com o governo estadual. "Fizeram um trabalho fantástico. Em três dias, puseram uma data de anarquistas na cadeia", disse Trump, antes de anunciar que vai enviar forças federais para Nova Iorque, Chicago, Filadélfia, Detroit e Baltimore. Todas metrópoles governadas por democratas, como Portland. É assumido: o presidente promete que "não abandonará" essas cidades entregues à "esquerda radical" e "laxista".
Criminalmente falando, Chicago, com 12 mortos e 51 feridos a tiro no fim de semana, está "pior do que o Afeganistão", diz o presidente, e, "se Biden entrasse" na Casa Branca, "o país inteiro iria para o inferno". Trump garante que não vai deixar que aconteça. Entretanto, a pandemia soma mortos (mais de 141 mil) e diagnósticos (mais de 60 mil diários há vários dias).
"Esquerda radical"
A pandemia e a gestão que dela tem feito são precisamente aquilo que menos interessa à campanha para a reeleição. Daí regressar aos temas favoritos, analisa o "The New York Times": a "esquerda radical" e a criminalidade. Já em 1989, o então magnata imobiliário investira contra a criminalidade em Nova Iorque, com publicidades paga nos jornais pedindo a pena de morte para cinco jovens negros e latinos na sequência de uma violação (que, verificou-se depois, não cometeram). E voltara ao ataque na campanha de 2016, apontando baterias à violência em Filadélfia, por exemplo.
O tema, é certo, tem ressonância entre os mais fiéis apoiantes. Por muito que Trump esteja a aproveitar a onda de protestos contra o racismo e a violência policial que surgiu depois da morte de George Floyd, cidadão negro asfixiado sob o joelho de um polícia branco de Minneapolis. Ainda que por vezes degenerem, os protestos estão a diminuir e têm pouco a ver com criminalidade urbana endémica.
"Retórica odiosa"
No dia em que os agentes federais não identificados investiram sobre Portland, um veterano da Marinha aproximou-se para lhes perguntar se não estariam a violar a Constituição. Levou bastonadas e gás lacrimogéneo. Outros foram ilegalmente detidos em carros descaracterizados. "Um trabalho fantástico", assegura Trump, que em junho se proclamou o "presidente da lei e da ordem" depois de a Polícia dispersar violentamente um protesto pacífico junto à Casa Branca.
Ted Wheeler, mayor de Portland, e Kate Brown, governadora do Oregon, avisam que a ingerência federal não é constitucional e pedem a saída dos agentes. Gretchen Whitmer, governadora do Michigan, cuja capital é Detroit, denuncia "uma retórica odiosa".
"Vivemos numa democracia, não numa república das bananas. Não toleraremos que os habitantes do Oregon ou de Washington sejam usados como acessórios dos jogos políticos do presidente", avisou a líder democrata da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi. Outros democratas põem mesmo o nome à coisa: "Abuso autoritário".
À margem
O tiro no pé
A repressão dos protestos pode valer a Trump o efeito contrário ao desejado: numa sondagem de final de junho para o NYT, 63% dos inquiridos disseram preferir um candidato "que se concentre nas causas dos protestos, mesmo que degenerem", em vez de se limitar à repressão de "manifestantes indisciplinados".
O recuo
Depois de meses a desvalorizar a pandemia e a geri-la com tiradas como injetar desinfetante, Trump virou anteontem a agulha. Além de dizer que usar máscara é patriótico (recusara-a até há dias, por ser sinal de fraqueza), vai retomar os briefings diários na televisão. Têm recordes de audiência, diz ele.