Uma menina de 13 anos interrompeu uma gravidez resultante de um dos repetidos abusos que sofreu. As mulheres que facilitaram o aborto foram detidas. O agressor não. E assim se inflamou o debate em torno da descriminalização do aborto na Venezuela, pressionada pelo exemplo argentino.
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Chamemos-lhe Ana. A proteção do nome verdadeiro é aliás das únicas que vai tendo nos últimos tempos. Depois de ter sido obrigada a deixar a escola, que fechou há dois anos como resultado da crise económica que assola a Venezuela, Ana foi violada pelo menos seis vezes por um vizinho, que ainda ameaçou fazer mal à família - a mãe e a maioria dos sete irmãos com quem vive (o pai foi morto por uma bala perdida em 2016) - caso contasse o que acontecera. E o que aconteceu foi o seguinte: o homem, ainda em liberdade, violou e engravidou aquela menina de 13 anos, que agarrava a mão da mãe e falava baixinho quando partilhou a história com a jornalista do "The New York Times" que a visitou, depois de, em janeiro, a imprensa local ter divulgado o caso.
Preocupada com a falta de menstruação, a jovem acabaria, em outubro, por falar à mãe dos vários abusos sofridos. Foram a um médico, que confirmou a gravidez e falou dos riscos que esta poderia comportar para a saúde da menor, e depois procuraram uma antiga professora da menina. Descrita como um pilar na comunidade e ativista pelos direitos das mulheres venezuelanas, Vannesa Rosales arranjou misoprostol, medicamento abortivo administrado legalmente em todo o Mundo, inclusive, por exemplo, em Portugal. Ana tomou-o, e, no dia seguinte, foi com a mãe à Polícia denunciar os abusos. Mas quando os agentes começaram a fazer perguntas, descobriram a interrupção da gravidez e não tardaram em deter a professora, que, de outubro a janeiro, dividiu uma cela com uma dúzia de mulheres, incluindo, por um período de três semanas, também a mãe de Ana. "Não me arrependo do que fiz. Qualquer outra mãe teria feito o mesmo", contou ao jornal norte-americano.
Seis meses depois da detenção e atualmente a aguardar julgamento em prisão domiciliária, Rosales enfrenta uma pena de prisão de mais de 10 anos, acusada não só de facilitar um aborto como de conspirar para cometer um crime. Enquanto isso, o abusador, sobre quem pende um mandado de detenção emitido pelo procurador-geral da Venezuela quando o caso foi tornado público, continua em liberdade. Resta a fé de Ana: "Todos os dias rezo a Deus para que ela seja libertada, que seja feita justiça e que o prendam."
Penas de até três anos para quem facilitar aborto
Abortar na profundamente cristã Venezuela, onde vigora um código penal datado de 1800, é crime em quase todas as circunstâncias (exceto quando "para salvar a vida" da gestante): mulheres grávidas que abortem intencionalmente podem ser presas entre seis meses a dois anos e pessoas que tornem possível o aborto enfrentam penas de um a quase três.
Segundo o presidente da sociedade ginecológica do país, para uma grávida poder abortar legalmente, tem primeiro de encontrar um médico que lhe diagnostique uma condição clínica específica que comprometa a própria vida e, mesmo depois, o caso tem de ser analisado por um conselho de ética. Um processo "complicado", pelo qual passam "muito poucas mulheres", admite Jairo Fuenmayor. Ana poderia ter sido elegível para um aborto legal, mas o procedimento é tão pouco divulgado e há tão poucos médicos a concedê-lo, que nem ela nem a mãe sabiam.
Pressão aumenta mas Igreja é contra
Em dezembro, a Argentina tornou-se no maior país da América Latina, que tem das leis anti-aborto mais rígidas do mundo, a legalizar o aborto. Ativistas venezuelanas esperam "aproveitar a onda do triunfo" no país irmão.
O caso de Ana, ocorrido na culturalmente conservadora cidade de Mérida, deu força às vozes que reclamam uma discussão séria sobre a legalização do aborto no país, almejando seguir os passos da Argentina. Em janeiro, um mês depois de o país vizinho ter legalizado o aborto, o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, controlada por Maduro, Jorge Rodríguez, reuniu com ativistas que propuseram, entre outras medidas, uma revisão do código penal, e disse-se disponível para um debate sobre o assunto.
Um debate que é rejeitado pela influente associação de bispos católicos do país, que, numa carta, rejeitou aquilo que considerou serem "conceitos falsos de modernidade", "novos direitos humanos" e "políticas que vão contra os desígnios de Deus".