"Crime contra a humanidade!...", grita Kiev. E o mesmo eco desde Moscovo. Na escalada da guerra, ucranianos e russos acusam-se mutuamente e alijam responsabilidades pelos riscos de uma catástrofe ambiental e humanitária.
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O perigo espreita na central nuclear de Zaporíjia - tomada pelos ocupantes russos como um "escudo nuclear", acusam os ucranianos - e também nas outras 14 unidades de produção de energia atómica operacionais na Ucrânia, todas à mercê de um ataque desesperado ou de uma bomba com azimute errado. O terror também mora na desativada central de Chernobyl, onde se verificou um dos maiores desastres da história do nuclear, em 1986, e onde, decorridos 36 anos e também sob ocupação das tropas de Putin, permanece uma bomba ao retardador, no depósito de mais de 20 mil metros cúbicos de resíduos radioativos.
Na sequência da inspeção efetuada "in loco", nos primeiros dias deste mês, o relatório da Agência Internacional de Energia Atómica (IAEA) sobre a maior central nuclear da Europa (a sétima maior do mundo) felicita-se pelo restabelecimento de uma terceira linha de fornecimento elétrico, ligada à rede pública de Enerhodar. E se esta cidade também se congratulou pela saída do "apagão", o maior alívio foi mesmo o restabelecimento pleno dos circuitos de segurança e de refrigeração dos reatores. Após os bombardeamentos nas cercanias, na última semana de agosto, a central chegou a estar cortada durante algumas horas da rede geral, o que lhe sucedeu pela primeira vez desde a inauguração, em 1985, do primeiro de seis reatores atuais.
A Europa em perigo
O corte acionou imediatamente as bombas a diesel do serviço elétrico auxiliar e duas linhas da rede foram restabelecidas em emergência, em menos de 24 horas, mas não evitou todos os receios, desde logo entre os 54 mil habitantes de Enerdhoar (censo de 2020) ou dos que ainda lá restam antes de a maioria ter fugido. E se a proximidade da ameaça causou o êxodo, nem por isso diminuiu o raio de alcance dos efeitos de um acidente, com consequências do conhecimento comum: "Se uma bomba atingir um dos reatores, a fuga de radiações terá consequências em toda a Europa", avisou o engenheiro ucraniano Olha Kosharna, "expert" independente em energia nuclear, citado pela agências internacionais.
Especialistas de todos os quadrantes dizem que um acidente em Zaporíjia causaria a libertação de grandes quantidades de césio 137, altamente radioativo e reconhecido pela capacidade de percorrer longas distâncias por via aérea, disseminado pelos ventos a milhares de quilómetros. A dispersão deste subproduto da fissão nuclear do urânio acarretaria consequências desastrosas para a saúde humana e dos ecossistemas.
Fukushima, meu clamor
E se também podem resultar de causas naturais, como sucedeu em Fukushima - em 2011, um terramoto, seguido de tsunami, destrui a central japonesa e causou um desastre ambiental -, a prevenção de acidentes nucleares está mais do que nunca na agenda internacional, sobretudo nestes tempos de todas as instabilidades. Nalguns casos, como sucede no próprio Japão, em Itália ou na Alemanha, a solução consiste no recuo ou na renúncia pura e simples a qualquer risco, ainda que a conjuntura internacional tenha apanhado Berlim em contrapé. Por imperativos energéticos e políticos, causados pelo fecho da torneira do gás russo, o Governo alemão, que tinha decidido encerrar as três centrais nucleares ainda operacionais no país, retrocedeu e decidiu, já este mês, manter duas delas "em reserva", até à primavera de 2023.
Para cá do Reno, comprova-se como a União Europeia tem uma política distante de ser comum: cada Estado-membro é soberano na matéria e, ao contrário do outro motor da Europa, a França acaba de anunciar um investimento de mil milhões de euros, até 2030, na indústria do nuclear, setor que oferece 200 mil empregos no "hexágono" e que garantia, até há dois anos, 75% do consumo de energia elétrica do país. Pressionada pela indústria do papel, muito "energívora", também a Finlândia aposta forte no nuclear, origem de 30% do consumo interno do país. Helsínquia até anda a escavar uma "tumba atómica" para enterrar os resíduos nucleares durante pelo menos 100 mil anos.
Rolls-Royce na corrida
Apesar do ambicioso plano nuclear anunciado por Emmanuel Macron, a França vê-se forçada a rever as estimativas do nuclear para os próximos tempos e até já teve de recorrer à importação, porque foi obrigada a encerrar, a toda a pressa, 28 dos 56 reatores instalados no país, por não terem passado nos testes de resistência efetuados no ano passado.
As fissuras encontradas nos tubos de inox das instalações mais antigas (esperança média de vida de 31 anos, segundo a IAEA) levarão alguns anos a ser reparadas e baixarão para 50% a contribuição do nuclear para a produção de energia elétrica no segundo maior produtor mundial de energia de origem atómica, com uma capacidade instalada só superada pelos Estados Unidos (92 reatores). O top 3 desta indústria completa-se com a China (55), que lidera a marcha asiática do nuclear. Segundo a IAEA, 33 países (32 mais Taiwan) repartem os 440 reatores espalhados pelo planeta (10% da produção mundial de eletricidade).
A retoma foi já anunciada por Emmanuel Macron, com o lançamento da produção de minireatores. São os chamados "Small Modular Reactors" (SMR), módulos de última geração, de dimensões bem mais pequenas e, sobretudo, mais práticos, a construir e a instalar. O "lobby" do nuclear gaba-lhes, sobretudo, a segurança.
Estes méritos dos SMR, incluindo os da quase nula pegada carbónica, são igualmente louvados no Reino Unidos, onde está já em marcha uma parceria público-privada de monta. A Rolls-Royce entra também na corrida à construção e montagem destes aparelhos e prevê a instalação de 16 centrais até 2050, num programa que prevê a criação de 40 mil empregos.
Pormenores
Pioneiros
O primeiro reator foi construído em 1942, na universidade de Chicago, com fins militares. Em 1951, também nos Estados Unidos foi produzida pela primeira vez eletricidade com origem nuclear. Em 1954, a URSS construiu a primeira central nuclear ligada à rede elétrica. O Reino Unido (1956), os EUA (1957) e a França (1963) seguiram-se no uso desta tecnologia para fins civis.
Emissões
Em 2021, o nuclear representou 10% da produção mundial de eletricidade. Segundo a Agência Internacional da Energia Atómica, o setor evitou a emissão de 55 mil milhões de toneladas de CO2 desde 1970, ou seja, o equivalente a dois anos de emissões mundiais deste gás com efeito de estufa.
Descarbonizar
A agência "onusiana" Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas estabelece a trajetória para limitar a dois graus Celcius a subida da temperatura no planeta: descabonizar a 100% a produção mundial de eletricidade (nuclear e renováveis) até 2070.
Produção
Entre 1960 e 1980, a produção de eletricidade de origem nuclear cresceu de 0 a 690 terawatts/hora (Twh). Até 2000, cresceu 360% e atingiu 2500 Twh. Em 2021, os 440 reatores de todos o mundo produziram 2653 Twh.
CO2
Fonte: ADEME, agência ambiental francesa - um kwh de eletricidade nuclear gera 6 g de CO2/equivalente (CO2eq), contra 12,7 g da eólica terrestre, 56 g do fotovoltaico, 406 g do gás e 1038 gramas do carvão.