O fumo do maior incêndio do ano vê-se a 40 quilómetros da Guarda, para quem sobe a A25, mas é no interior da serra da Estrela que as histórias aquecem nos relatos de terror de quem esteve perto de perder tudo. Uma casa ou uma aldeia, como Sameiro, em Manteigas. É um lugar revoltado que viu arder "90%" da freguesia.
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"Se não fosse o povo da terra e os poucos meios da Junta, com dois carros com um reservatório de 400 litros, e a aldeia tinha ardido toda, porque não houve um meio aéreo que deitasse aqui uma pinga de água e os bombeiros que aqui estiveram só faziam alguma coisa quando os ameaçávamos porque, diziam-me, tinham ordens do comando para esperar pelo fogo, quando a poucos metros havia casas em risco", conta o presidente da Junta, Miguel Ramos.
O autarca de primeiro mandato, cozinheiro de um hotel de cinco estrelas nas imediações, não tem a receita para acabar com o fogo, mas diz ter a certeza que na "cozinha" do comando impera a "desorganização".
Água da rede
"Vou-lhe dar um exemplo. Tínhamos aqui duas cisternas com milhares de litros de água, mas os bombeiros estavam a querer tirar água da rede porque, justificavam, foi o que mandou o comando. Daqui a dias, a aldeia quer água da rede e não tem. Tive de lhes mandar uns berros para eles usarem a água da cisterna". É uma aldeia com "exército" da casa. Espalhados por vários pontos do lugar, há vigilantes atentos aos reacendimentos.
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dias sem dormir
Desde terça-feira, dia em que as chamas cercaram Sameiro, que Joaquim Ramos, de 67 anos, quase não dorme. Não admira. Foi ele quem teve o fogo mais perto de casa. Ontem, a meio da tarde, apanhamo-lo a apagar pequenos fogachos que não param de arder. "Nunca vi uma coisa assim. Não fosse o pessoal da aldeia e os GIPS da GNR e tínhamos ficado sem casa, eu e os meus vizinhos do lado". Graça, a esposa, diz que já tinha a mala com os documentos pronta para abandonar a casa. O mesmo dizem os vizinhos Manuel e Graça, que preferem Sameiro à Normandia e que não trocam o lugar onde nasceram mesmo com ameaças de fogo recorrentes, "como em 2016", lembra Graça, 67 anos.
Um ex-bombeiro salvador
Entre os cerca de 300 residentes de Sameiro, agora bem mais com os emigrantes, muitos andaram de mangueira e ferramenta na mão a combater o "inferno". Mas poucos têm o "curriculum" de Bruno Lucas. Salvou casas de vizinhos e evitou que a moradia da tia, em Verdelhos, a poucos quilómetros de Sameiro, mas já no concelho da Covilhã, fosse engolida pelas chamas. Na terça-feira à tarde, depois de saber que Maria e Adelino, os tios, septuagenários, tinham sido retirados de casa quase à força por questões de segurança, este ex-bombeiro de Manteigas, que teve de abandonar os voluntários por questões profissionais, foi ver como estava a casa. Só teve tempo de pegar na mangueira e baldes e, com a ajuda do vizinho, evitou o pior.
"O fogo percorreu centenas de metros em poucos minutos e se não estivéssemos aqui várias casas tinham ardido", diz Bruno, apontando para o chão pintado de preto e a fumegar à porta de casa.
Maria diz que rezou e chorou no local para onde a levaram, porque pensou que tinha perdido a casa, à qual tinha regressado há três dias, para as habituais férias de emigrantes. Antes de regressar a França, vai ter que pagar um jantar ao sobrinho, "num restaurante".