Ana Catarina Mendes: "Falta de ambição no Orçamento teria sido cortar pensões"
Foi deputada durante 27 anos e agora é sua a responsabilidade de fazer a ponte entre Governo e Parlamento. Ana Catarina Mendes assegura não recear o esvaziamento da sua pasta e esperar grande envolvimento de BE e PCP no próximo Orçamento do Estado.
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Sobre as polémicas no acolhimento de refugiados ucranianos, Ana Catarina Mendes ainda aguarda o relatório relativo aos incidentes em Setúbal e garante não haver, até agora, qualquer caso de abuso laboral ou tráfico de seres humanos comprovado.
Podendo a pasta dos Assuntos Parlamentares ficar facilmente esvaziada, receia perder o peso político que conquistou ao longo de 27 anos como deputada?
Não é uma pasta esvaziada, em primeiro lugar, porque ainda por cima numa maioria absoluta o Parlamento é essencial e central na fiscalização que faz ao Governo. Nunca tive medo de perder peso político, porque nem sei muito bem o que isso é. Como ministra Adjunta dos Assuntos Parlamentares, com duas secretarias de Estado com áreas muito transversais e todas elas muito importantes, seja no Desporto e na Juventude, seja nas Migrações e na Igualdade, espero conseguir ter a força suficiente para fazer o que é preciso nestas áreas.
Apesar da promessa de uma maioria de diálogo, o que vimos agora na negociação do Orçamento foi, de certa forma, um passeio no parque por parte do Governo.
Eu vou-me permitir discordar. Foi um passeio no parque para quem não esteve a trabalhar a sério e com muito rigor naquilo que era absolutamente essencial. Nós dissemos sempre que este Orçamento do Estado seria igual em tudo o que tinha de ser igual, por isso mantivemos os nossos compromissos eleitorais, diferente em tudo o que tinha que ser de diferente. E por isso tivemos que adaptar em algumas coisas face ao contexto geopolítico, fruto da guerra que se vive na Ucrânia. Isso significou uma abertura para negociar e para dialogar com todos os partidos que quisessem melhorar o Orçamento do Estado. Ao final deste tempo, foram aprovadas e integradas cerca de 75 propostas da oposição. Se nós fizermos uma comparação com aquilo que foram os governos da PàF, aprovaram 43 propostas de alteração e foram oito orçamentos do Estado, é bom relembrar.
As pontes com PCP e com Bloco de Esquerda estão irremediavelmente perdidas?
Não, só uma pessoa que não respeita a democracia é que não faz pontes com todos os partidos. E é evidente que nós não podemos esquecer o passado recente com o PCP, com o Bloco de Esquerda. Não foi o PS que decidiu quebrar o acordo que tínhamos iniciado.
Acredita que o próximo Orçamento do Estado já contará com maior envolvimento do PCP e do Bloco de Esquerda?
Eu espero que se envolvam mais, mas é evidente que não estava à espera que, em 2022, para este Orçamento em concreto, que tinha sido chumbado pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda, mudassem de opinião.
O Governo está a criar margem para o próximo Orçamento do Estado, em que será inevitável o preço a pagar pela subida galopante da inflação?
A margem é o caminho que o Governo tem mantido desde 2015. Para muitos pode parecer um chavão, para nós é uma regra de ouro. As contas certas e o caminho que se trilhou desde 2015, que enfrentou uma pandemia e que está a enfrentar agora os preços galopantes, são o melhor compromisso.
Foi preventiva a falta de ambição que é apontada ao Orçamento do Estado quase em vigor?
Julgo que não podemos falar em falta de ambição quando estamos a falar da melhoria do rendimento das pessoas, garantia à infância, permitindo que milhares de crianças possam sair da pobreza....
Essas medidas já vêm do ano passado. Face ao novo contexto, ambição, por exemplo, na questão salarial.
Talvez falta de ambição tivesse sido cortar na prestação da infância por causa da situação que estamos a viver, cortar nas pensões, talvez falta de ambição fosse mesmo não garantir o reforço do Serviço Nacional de Saúde ou o reforço da proteção social.
Então seria recuar e não tentar reforçar as medidas?
Não, não. Mas a ambição que nós temos que ter é a ambição de conseguir ter contas certas, que nos permitam responder às exigências do momento. Se não tivesse havido um superavit em 2019, não conseguiríamos responder como respondemos na proteção social, no apoio às empresas ou no apoio ao Estado social, designadamente no Serviço Nacional de Saúde ou na Educação, onde foi preciso adaptar as novas tecnologias à nova realidade, nós nunca conseguiríamos reagir nem responder a essa pandemia. Neste momento, se nós não tivéssemos esse caminho de contas certas e caminho sustentado e equilibrado das contas, não era possível continuarmos a ter o desdobramento dos escalões do IRS para aliviar fiscalmente as famílias. Por isso é que o Governo respondeu ao aumento dos combustíveis, e por isso é que o Governo respondeu ao aumento do preço dos bens essenciais, designadamente dos alimentos, com os 60 euros para o cabaz alimentar, estendido agora a mais 280 mil pessoas.
Há pouco usou a expressão de que só uma pessoa que não respeita a democracia não faz pontes com todos os partidos. Neste todos, qual a posição que o Chega pode ocupar?
Nestes todos, julgo que o diálogo institucional deve existir com todos os grupos parlamentares. É evidente que as escolhas políticas estão muito centradas naqueles que têm a perspetiva democrática, independentemente de ser à Esquerda ou à Direita, mas que sejam verdadeiros democratas.
Qual a sua expectativa para a nova liderança do PSD e como encara o facto de André Ventura ter desafiado Luís Montenegro para uma frente de Direita?
Esse é um problema entre o Chega e o PSD, não me compete avaliar a liderança do PSD. Acho é que Portugal e o sistema democrático precisam de um partido de oposição forte e de um PSD mais forte. Mais do que a liderança do PSD, o que interessa saber é quais são as propostas que têm para o país e que as possamos todos discutir.
O incidente da recusa de Almeida Costa no Tribunal Constitucional é um sinal positivo sobre a consciência dos riscos de ameaça aos direitos das mulheres? Não corremos o risco de retrocessos em direitos adquiridos, como nos Estados Unidos?
Julgo que devem soar os alarmes com o que estamos a ver nos Estados Unidos; pode vir a ser um retrocesso muito significativo nos direitos humanos. A questão da interrupção voluntária da gravidez é uma questão que me foi muito cara na luta que tivemos. Todos os ataques que sejam feitos a esta conquista são ataques societais e a valores civilizacionais. Julgo que deve ser colocado no plano dos direitos humanos, no plano do que são os nossos valores fundamentais, que a Constituição preserva.
Mas entende que há esse risco de contágio, digamos assim, a partir dos Estados Unidos?
Felizmente, desse ponto de vista, não estamos com a ameaça dos Estados Unidos. Acho que Portugal evoluiu muito e tem hoje uma democracia madura, mas há uma coisa que nos deve alertar a todos. É que os direitos, as liberdades e as garantias são para ser todos os dias aprofundados e respeitados. A democracia é construída todos os dias e qualquer ataque desta natureza deve mobilizar-nos para continuarmos a garantir que não há retrocessos. Antes pelo contrário, deve haver aprofundamentos.
Já tem conclusões da investigação da Inspeção-Geral das Finanças ou da Comissão Nacional de Proteção de Dados no caso de atendimento de refugiados ucranianos em Setúbal?
Ainda não. Tanto quanto sei, estarão para breve essas conclusões, estou evidentemente a aguardá-las. Assim que estiver, serei também a primeira a dizer quais os passos seguintes em função do que são as conclusões do inquérito.
Declarações do coordenador da Plataforma de Apoio aos Refugiados dão nota de que haverá situações de abusos, nomeadamente em questões laborais. Como tem estado a decorrer a monitorização do acolhimento?
Vale a pena termos, primeiro que tudo, uma realidade presente. Temos em Portugal cerca de 39 mil pessoas que vieram da Ucrânia, fugidas a esta guerra. Estamos a falar, em 100 dias de guerra, em sete vezes mais refugiados do que os que nos últimos cinco anos entraram em Portugal. Há, neste momento, 4600 crianças já integradas nas escolas, cerca de três mil contratos de trabalho celebrados e há 10 mil disponibilidades de alojamento que foram colocadas no mercado. A ACT tem estado muito ativa na fiscalização das condições de trabalho.
Há irregularidades reportadas?
Não há nenhum caso e eu quero descansar também as pessoas com isto, não há nenhum caso que nos tenha sido relatado como abuso laboral por parte da ACT. Estamos tanto mais atentos a isto porque agora estamos a responder à emergência, mas não podemos esquecer que Portugal tem recebido ao longo dos anos muitas pessoas, sejam imigrantes ou refugiados, e por isso mesmo a exploração laboral é também uma violação dos direitos humanos. Há também quem venha dizendo que há situações de tráfico de seres humanos. A comissão para a igualdade de género tem sido muito ativa na parceria com a ACM, neste combate ao tráfico de seres humanos. Dos 27 casos que nos foram chegando como possíveis tráficos de seres humanos, 26 estão completamente afastados, e um está em investigação. Esperemos que não seja nada também.
Em relação às dificuldades no processo de descentralização, há por parte do Governo margem para responder aos apelos de reforço de verbas para os municípios? Têm sido ouvidos os apelos do presidente da República ao bom senso e à negociação?
O Orçamento do Estado já veio dar resposta significativa a um conjunto de matérias que estão inscritas para a descentralização, desde logo, a autonomia do fundo para a descentralização, que tem um aumento significativo. Na área da educação, de resto, foi aumentado o valor para a área de recuperação e manutenção dos equipamentos escolares. As negociações e o diálogo decorrem com a Associação Nacional de Municípios e o Governo e eu estou convencida que encontraremos as melhores soluções com todos os municípios.
Admite que atrasos na descentralização possam comprometer o calendário da regionalização?
Vamos por partes. Primeiro, que se faça a descentralização. E não acho que estejam comprometidos os prazos, nem esteja comprometida, sequer, esta reforma. Acho que entre o Governo e a Associação Nacional de Municípios se encontrarão as melhores respostas.
Leu o artigo do ex-presidente da República, esta semana? Como é que interpreta as críticas de Cavaco Silva?
Filiei-me no Partido Socialista precisamente porque tinha uma opinião crítica das políticas de Cavaco Silva e não me esqueço do professor Cavaco Silva. Só posso interpretar como faz falta uma oposição forte em Portugal, estará com saudades da política, ou não consigo perceber.
O ex-presidente da República é, nesta altura, a única oposição que existe ao Governo?
Não. Acho que o ex-presidente da República fala sempre com um sentimento de azedume e ressentimento perante o país. Eu tenho muita esperança no país que temos. Não é um artigo ou outro, a espaços, que faz a oposição. O que é preciso é uma oposição forte que demonstre o que quer para o país. E não é isso que o professor Cavaco Silva faz. O professor Cavaco Silva não diz o que quer para o país, limita-se a dizer que está tudo mal. E, por isso, há algum despeito com a maioria absoluta, não é para sublinhar, é para continuar a fazer o trabalho que temos feito pelos portugueses.
Em relação à pasta do Desporto, preocupa-a que continuemos a ter episódios sistemáticos de violência e de racismo?
Nos próximos tempos, haverá novidades sobre aquilo que estamos a fazer, nas reuniões com as várias entidades, para que a violência no desporto possa ser uma realidade combatida. Para que o racismo e os cânticos racistas não existam. Estamos a fazer esse trabalho.
É um trabalho que passa mais pela pedagogia ou estão em vista alterações legislativas?
Passa por alterações legislativas, e passa muito pela pedagogia. Direi a seu tempo, mas são mudanças para rever e para reforçar os mecanismos de vigilância no combate à violência no desporto.
Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF