Candidata à Presidência da República diz que há quem aposte na abstenção. Socialista critica também "excessiva banalização do estado de emergência", que considera "perigosa para a democracia".
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Ana Gomes acusa Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa de desvalorizarem as eleições, o primeiro por ter marcado as presidenciais no fim do prazo e não ter garantido medidas para travar a abstenção em tempo de pandemia, e o segundo sobretudo pela falta de comparência nesta corrida. A candidata a Belém revela ainda que apoiaria Pedro Nuno Santos numa candidatura à liderança do PS e confessa que gostaria de ver uma "geringonça 2".
É por falta de comparência do PS que se candidata nestas presidenciais?
Também é por falta de comparência da direção do PS. Mas não dos socialistas. Sinto-me bastante acompanhada por muitos e muitas socialistas. E isso dá-me força. Também não desvalorizo o apoio que sinto de muitos apoiantes do PAN, do Livre e de muitos cidadãos independentes que estão comigo desde a primeira hora.
Como vê essa opção do PS?
De forma crítica, porque a democracia exige a comparência de todos os partidos. Em particular, dos que têm, como o PS, um papel fundador da nossa democracia. Quando ela está sob ataque, não só aqui mas a nível global, de forças que querem voltar a projetos autoritários, violentos e semeadores da discórdia, mais importante era que as formações democráticas socialistas estivessem presentes.
Se o PS tivesse lançado um candidato próprio, teria desistido de avançar?
Dependendo do candidato. Mas certamente seria uma personalidade abrangente. Não faltam homens e mulheres no PS ou na sua área política que teria todo o gosto em apoiar se o partido tivesse tido essa visão.
Condena a aposta de António Costa na reeleição de Marcelo? Revela uma proximidade excessiva?
Não podemos ter ilusões. Há setores, dos que têm capturado o Estado, que se apoiam no bloco central de interesses e se infiltram nos partidos do arco da governação. O PS não é imune. Foi uma decisão da qual discordo e que me fez sem dúvida avançar.
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Tem insistido que isto não é uma coroação. Como evitá-la, se até o seu partido não quis ter candidato?
Uma eleição deve ser sempre um ponto alto do processo de construção democrática. Marcelo foi o presidente eleito com o segundo maior nível de abstenção. É muito preocupante. Não gostaria de ver agora essa tendência agravada, mas admito que isso se verifique pelas restrições impostas em pandemia e inquietações de segurança sentidas pelos cidadãos. É lamentável que as eleições tenham sido marcadas tão tarde, no último dia do prazo pelo presidente da República, que não se tenha dado tempo para tomar medidas alternativas que contrariassem a abstenção, e que o Parlamento não tenha sido solicitado a tomar, a tempo e horas, medidas que poderiam minorar esse impacto.
Como por exemplo?
Garantindo o exercício do direito de voto aos emigrantes, através da regulação há muito em falta do voto por correspondência. E também para os cidadãos que estarão em confinamento obrigatório, em situações de risco que impõem maiores preocupações, haver acesso ao voto por correspondência ou voto eletrónico, que há muito tempo se justificava que fosse contemplado e ainda mais nestas circunstâncias.
Tendo informações privilegiadas, presidente e primeiro-ministro estariam à espera que estivéssemos agora nesta situação?
Estamos há 10 meses a viver uma crise pandémica. Foi o presidente que bem cedo alertou que vinha aí uma segunda vaga e até podia haver uma terceira. Não faltaram avisos de que as condições sanitárias se poderiam deteriorar. Portanto, não faltou tempo para medidas alternativas. Não foram tomadas porque não houve vontade política. Se calhar, há quem aposte na abstenção.
Desvalorizam propositadamente estas eleições?
Há quem queira desvalorizar estas eleições e é por isso que falo em coroação. A não comparência da direção do PS, a marcação do ato eleitoral no último dia do prazo pelo presidente e a não tomada das medidas alternativas que se esperaria que a Assembleia tomasse por via legislativa, tudo contribuiu para desvalorizar as eleições.
Governo e Belém têm gerido bem esta pandemia?
Tenho a certeza que se nortearam por aquilo que acharam melhor. Gostaria de ter visto mais proteção direcionada aos grupos de alto risco, as pessoas com mais de 80 anos, não só nos lares mas nas suas casas. Mesmo no quadro do plano de vacinação. E não concordo que se tenha banalizado o estado de emergência. Havia mais do que tempo para a Assembleia legislar. E era obrigação do presidente pedir isso para haver uma lei de emergência sanitária que obviasse a esta excessiva banalização do estado de emergência que é perigosa para a democracia.
Também acusou o Chega de ameaçar a democracia e Marcelo de normalizar a extrema-direita.
É muito negativo que Marcelo venha dizer que essas forças da ultradireita são como outra qualquer e basta combater as ideias. É preciso ter memória das lições da história. E quem combateu o fascismo como eu não vai nunca perder essa lição.
Terei todo o gosto em apoiar Pedro Nuno Santos
Como responde àqueles que referem que a sua candidatura à Presidência da República poderá ser um balão de ensaio para uma candidatura do ministro Pedro Nuno Santos, um dos seus apoiantes, à liderança do PS?
Sou uma militante de base do PS, mas nunca me demiti de intervir a todos os níveis e por todos os meios. Onde quer que eu esteja no dia a seguir ao 24 de janeiro - e espero desde logo estar numa corrida para uma segunda volta nestas eleições presidenciais -, naturalmente que nunca abdicarei de tomar uma posição. Tenho muito apreço pelo Pedro Nuno Santos, é um valor extraordinário para o PS ter um dirigente jovem, capaz, competente, conhecedor do tecido económico e social do nosso país, e, sem dúvida, terei todo o gosto em apoiá-lo se ele tiver, de facto, aspirações de liderança do PS.
Isso quer dizer que esse capital de votos que conseguirá reunir agora, nestas eleições, para Belém poderá ser também usado para isso?
Isso é uma questão que neste momento não se põe. Não foi aberta nenhuma disputa pela liderança socialista e o que disse é na perspetiva de um dia isso acontecer. Não há lideranças eternas.
É crítica da atual liderança socialista de António Costa?
Sou construtivamente crítica de qualquer liderança do PS, porque nenhum socialista pode perder o espírito crítico. Acho que é um apanágio de qualquer socialista ter sentido crítico. E os melhores e mais importantes apoios vêm daqueles que nunca perdem essa independência. Portanto, tenho a certeza de que o próprio António Costa valoriza os apoiantes que não perdem o discernimento crítico.
Gostaria de ter visto uma geringonça 2
É adepta de uma "geringonça" no Governo?
Apoiei a "geringonça" desde a primeira hora porque percebi que o país precisava de se libertar do sufoco que era o Governo mais troikista do que a troika. E gostaria de ter visto uma "geringonça 2", embora pudesse ser noutro formato. Teria permitido solidez parlamentar para o PS poder encetar reformas estruturais de que o país absolutamente precisa para se desenvolver, como a grande reforma administrativa que deve caminhar para a regionalização. Mas também na Justiça, que está claramente pervertida, ou nas forças de segurança, infiltradas por elementos da ultradireita
Marcelo não tem promovido essas reformas?
Toda a gente sabe que, desde há décadas, Marcelo Rebelo de Sousa tem sido o mais determinado opositor da regionalização. Impôs o acordo que levou ao referendo de forma bastante perversa. Obstruiu o processo, mas o nosso país não pode continuar assim. Se não fossem o poder autárquico e as instituições locais era impensável e inviável que as decisões do Governo, por exemplo agora na crise sanitária, fossem eficazes e chegassem a quem mais precisa. Temos que tirar partido desse conhecimento que têm do tecido económico e social. É fundamental para melhor aproveitar os fundos europeus, do novo quadro plurianual mas também da tal "bazuca". Precisamos de uma estratégia que desde já aposte num efetiva descentralização e desconcentração da administração. Não são eleições falsificadas como as que foram ensaiadas para as comissões de coordenação e desenvolvimento regional. É essa diferença que posso e quero fazer sendo eleita. E não tenho dúvidas de que o Governo de António Costa alinhará nesse projeto.
O que espera da presidência portuguesa da União Europeia?
Espero que seja bem sucedida. É decisiva, não apenas para Portugal mas para a Europa, a centralidade do pilar social, nomeadamente com a cimeira que vai ser realizada no Porto. É muito importante voltar à construção do pilar social europeu. Precisamos de ter concorrência leal no mercado interno europeu, o que implica combater os esquemas perversos, designadamente os offshores, sistema que faz com que as grandes multinacionais paguem muito menos impostos do que as pequenas e médias empresas. E há empresas portuguesas que pagam menos impostos porque têm uma caixa de correio na Holanda..
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